Encontro do Rio Jequitinhonha com o Mar - Belmonte/BA - Foto: Internet |
Tenho sorte de dormir muito.
Eram muitas horas de estrada. Mas não
era pelo caminho a tal sorte, que de caminho eu gosto até bastante. Era pela
verdade que eu não queria assentir.
Não era a primeira vez que eu ia vê-lo.
Ele mesmo não vinha a Minas, mas eu fui atrás dele em vários estados. Ele
sempre me recebeu bem. Umas vezes mais afável, outras mais agitado. Enfim, a
gente já tinha até uma história. Não sei nem se posso chamar de paixão. Queria
chamar de mistério, e temo pela minha não propriedade de remexer na língua que
tanto admiro. Mas vou chamar de mistério, como se mistério fosse um sentimento
próprio de romance. Eu sentia um mistério por ele. Não esse mistério de
curiosidade, era mais de inexplicável.
E ele é, de fato, um trem lindo. Penso
que isso seja um consenso. Nunca vi ninguém dizer o contrário. E nem fico com
ciúmes, porque nem é uma relação de posse. Sei que ele é de todo mundo.
Imponente, seguro, destinado. Não é de se causar admiração que eu tenha por ele
esse feitiço. Eu tenho fascínio por segurança. Talvez por um amor invejoso do
que sou falta.
Mas sempre houve aquele nó.
O primeiro toque foi gélido. E, dali um
pouco, percebi que era mais do calor de minha expectativa que de sua pensada
frieza. Compreendo que ele não é frio. Só próprio mesmo. Sei que ele gosta de
minha companhia, mas não precisa dela. Eu sinto isso estranho em mim, porque
tenho uma tendência insuportável e incompreensível ao amor que imprescinde.
A nossa relação é boa, acho que posso
dizer assim. E seria plena, não fosse a mentira. E o outro.
Era como se eu traísse o que deixava
para trás.
Na verdade, eu traía o que deixava para
trás. Só que, o nó no peito, era injustificado. Parecia que era de um puritanismo
que não concebo. E essa era fonte do caos interior: medo de estar sendo outra.
Eu nem sei quando aconteceu. Sou uma
moça lerda, movida à ímpetos. É num repente que sei coisas que já sabia sem
perceber e faço o que é preciso para continuar equilibrada no caminho.
Talvez seja uma ordem natural das
coisas. Que no limite aconteça o que precisa acontecer. Penso nisso porque
acontecem coisas que podiam ter acontecido antes, se eu percebesse o que eu já
sabia.
É um pouco de pretensão imaginar que o
cosmo se preocupa com meu equilíbrio. Com meu equilíbrio particular. Mas há um
equilíbrio universal, do qual faço parte com minha pequenez. E eu acredito
nele.
Fato é, aconteceu. E eu só pude pensar
tudo isso depois de ter sido acontecida pelo cosmo, ou pela descoberta, ou pelo
quê.
Era como se eu estivesse traindo um e
outro.
Mas a traição nunca foi o encontro. Era
o silêncio. Não o silêncio comum da indecência, mas o silêncio da propriedade.
É como se estivesse traindo a mim.
É difícil não estar no mesmo. E o viver
tem umas verdades de maioria em que eu não caibo. Mas que — juro, me custa o
sossego entender por que — eu avoco.
É verdade que relutei, e o medo grande
que percebo, o de ir contra a maré, me dá alguma sensação de comiseração. É
temorosa a força quando é a necessidade que carece. Mas que belo ter
acontecido. Talvez eu esteja aprendendo a amar mais o que sou. Ando ansiando
mesmo pelos dias de crescer.
Mas enfim, eu consegui. Aproveitei que
não tinha muita gente perto e fiquei de frente com ele. Engoli seco, mas,
apesar de ir lenta, não freei, para não voltar atrás.
Assumi bem baixinho, o que já devia ter
dito há muito tempo. Inaudível, de maneira que só ouvisse quem realmente
importava. E eu acho que ele compreendeu. Respirei fundo e sussurrei no meu ouvido:
— Desculpe-me, Mar, eu amo mais o Rio.
Nenhum comentário:
Postar um comentário