quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

O sonho do Instituto Federal Quilombola

 

 

Arte: Jashad Macbee

Depois de meses de lutas, expectativas, articulações e medos, no coração da renovação educativa e cultural do Brasil, eis que nosso Presidente da República Federativa do Brasil, nosso estimado Presidente Lula, anuncia o que tanto esperávamos, a criação do Instituto Federal Quilombola, uma entidade pioneira destinada à promoção da igualdade de oportunidades e à valorização das comunidades quilombolas e tradicionais, em uma primeira instância no nosso querido Vale do Jequitinhonha, mas que é esperança para criação de outros.

Essa luta não apenas por um centro educacional, mas como um marco na luta pelo reconhecimento e pela valorização da identidade do povo quilombola e demais povos tradicionais desse país, no qual ajudaram a erguer essa nação com suor é sangue.

Essa luta não é de agora, esse sonho de uma escola pública, de qualidade e que valorize o saber popular, os povos que estão no território, também não é de agora, é um sonho de sempre...., foi uma luta de muitos, no qual alguns nem estão mais entre nós.

Já nos fizeram acreditar que teríamos escolas públicas federais em nossa região e que elas cumpririam esse papel, mas as que aqui foram instaladas, não cumprem os objetivos que sonhamos, são apenas instituições escolares para garantir a mão de obra especializada para o mercado capitalista.

Temos agora uma nova esperança, estamos eufóricos, sonhado e acreditando que agora vamos realizar esse sonho, que às vezes é tão utópico.

Mas ainda é utópico! Vencemos uma primeira etapa, mas ainda temos muito trabalho pela frente, enfrentar os oportunistas que agora se colocam como pais da criança, será preciso uma construção coletiva com instituições, organizações sociais e pessoas que tenham o mesmo senso comum. Essa escola precisa ser diferente, desde a construção do prédio ao projeto político pedagógico, precisamos e devemos respeitar as diretrizes da base curricular nacional, mas precisamos fazer uma discussão ampla para que as idéias que temos sobre educação inclusiva para os povos tradicionais estejam incluídas nesse novo modelo de escola. Será preciso incentivar o nosso povo a prestar concurso público, em instituições federais de ensino, para que essa nova escola tem mais cor e diversidade.

Nós povos de quilombos representamos um capítulo fundamental na história do Brasil, onde nossos povos outrora escravizados resistiram contra o sistema opressor criando comunidades livres, conhecidas como quilombos. Com o passar dos séculos, nossas comunidades quilombolas mantiveram sua rica cultura e tradições. Em resposta à marginalização histórica e à necessidade de inclusão dessas comunidades no sistema de educação formal, o governo instituiu o Instituto Federal Quilombola, uma reparação histórica e necessária.

Para todos nós, de modo muito especial aos que vieram antes de nós, temos a consciência que esse instituto será criado com o intuito de servir como um polo de desenvolvimento educacional, com um currículo adaptado que respeita e incorpora os saberes tradicionais quilombolas. O plano pedagógico será inovador, procurando equilibrar conhecimentos técnicos e científicos com práticas e conhecimentos ancestrais, garantindo assim uma educação integral e representativa.

Com uma gama de programas de curso educacionais, superior e técnico, o Instituto Federal Quilombola se destacará pelo seu comprometimento com a formação continuada e inclusiva. Os cursos oferecidos cumprirão seu papel de dialogar com as mais diversas áreas do conhecimento, técnico e ancestral,nas áreas da agricultura sustentável, gestão ambiental, estudos culturais, educação para o patrimônio e a cultural, entre outros, todos sob a perspectiva da realidade dos povos tradicionais.

A criação desse instituto estende-se á para além das paredes das salas de aula. Há um claro comprometimento com o desenvolvimento local, fomentando projetos que estimulam a economia das comunidades quilombolas e tradicionais. O acesso à educação de qualidade tem o objetivo de proporcionar uma transformação social, permitindo que jovens e adultos quilombolas e de outras comunidades tornem-se embaixadores de sua cultura e história.

Por fim concluo dizendo que meu coração esta em festa e que sonhos outrora adormecidos, acordou com o anuncio da criação do Instituto Federal Quilombola, no Vale do Jequitinhonha, na cidade de Minas Novas. Acredito eu que o Instituto Federal Quilombola não será apenas um exemplo de inclusão e reconhecimento educacional para o Brasil, mas também para o mundo. Ele representa um passo importante para reparar injustiças históricas, garantindo que as próximas gerações de quilombolas e outros povos tradicionais possam prosperar, preservando suas tradições e, ao mesmo tempo, engajando-se ativamente no diálogo global de inclusão das ditas minorias, mas que somos maioria.

Esta instituição é um farol de esperança e um modelo para iniciativas semelhantes no restante do país e em outras nações.


Estão nos permitindo sonhar novamente.

Ubuntu

 

Jô Pinto,

na terra das Águas Brancas



 

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quinta-feira, 15 de junho de 2023

GIRO PELO VALE - Vale do Jequitinhonha de Luto, morre Maria Rosa Negreiros


 O cidade de Caraí é o Vale do Jequitinhonha de luto.


A história de Maria Negreiros (1973) é marcada por persistência, superação, resiliência e, como tem de ser, felicidade. Na década de 90, com duas filhas pequenas, Maria dividia seu tempo entre os afazeres domésticos e a plantação de feijão. Com a escassez das chuvas em boa parte do ano no Vale do Jequitinhonha, buscava alternativas para melhorar a renda da casa. 


Por influência de uma vizinha merendeira e ceramista nas horas vagas, Maria se aventurou no barro. “Ficava pensando ‘Aqui, desde pequenininha, a gente brinca com barro, então alguma intimidade eu tinha que ter’. Tentei e insisti até dar certo”, conta com alegria. A primeira peça a sair de suas mãos foi um presépio e, em poucos dias, foi vendida para uma cliente que se encantou com a composição.


De lá pra cá, Maria se dedicou a narrar suas redondezas. As construções, em especial, revelam traços do trabalho, da arquitetura e das relações nas zonas rurais e urbanas dos pequenos vilarejos do Vale. Com a ajuda do barro, eterniza lugares das ruas e da memória, estimulando registros a partir da observação e da invenção. “Sinto muito orgulho de fazer o que eu faço. Nada me deixa mais contente do que ver as peças prontas. É a melhor ocupação para a minha cabeça e para minha vida”, exclama. Bravo, Maria!


Texto e foto

Renato Primo

Secretária Municipal de Cultura de Caraí 

segunda-feira, 5 de junho de 2023

MEMÓRIA CULTURAL - Quiabo


 

 

O quiabo(cujo nome científico é Abelmoschus esculentum) tem origem africana e possivelmente começou a ser cultivado na região entre  o Egito e a Etiópia. Mas é também muito consumido no Sudão, Nigéria, Mali, Guiné-Bissau e Burkina Faso. Nos Estados Unidos ele é considerado um alimento típico dos Estados do sul.

  Sua chegada às Américas tem íntima relação com o triste período do tráfico negreiro. Ao traficar as pessoas capturadas na África, o vegetal também foi trazido para o “Novo Mundo”. Os primeiros registros do alimento em terras brasileiras datam de século XVII.

O quiabo também tem uma importância, além da culinária, na cultura afro-brasileira. No candomblé, existem rituais em que o alimento é utilizado como oferenda aos orixás Ibeji, protetor das crianças, e Xangô, que representa a justiça. Também pode ser preparado  como o “ajebo ou ajébo, feito com seis ou doze quiabos cortado em "lasca", batido com três clara de ovos até formar um musse, regado com gotas de mel de abelha e azeite doce. Colocado em uma gamela forrada com massa de acaçá ou pirão de farinha de mandioca, ornado com doze quiabos inteiros, doze moedas circulante, doze bolos de milho branco e seis Orobôs. A mesma oferenda pode ser oferecida a outras qualidades de Xangô, todavia acrescenta-se azeite de dendê e substitui os doze bolos de milho branco por doze acarajés

Quiabo cru, cozido, refogado, assado ou frito. Não importa o modo de preparo, quiabo é um desses alimentos que permite uma infinidade de combinações.

Atualmente, é cultivado em diversas regiões do País, principalmente no Sudeste. Entretanto, um dos maiores produtores do vegetal fica no sertão sergipano. Localizado no município de Canindé de São Francisco, no Alto Sertão Sergipano, o Perímetro Irrigatório Califórnia é referência no cultivo.

Em razão da quantidade de fibras presente no fruto, ele também é indicado no combate à aterosclerose, pois diminui os riscos de derrame e ataques cardíacos. Rico em vitaminas A, C, B1 e cálcio, há relatos na literatura de pacientes que se alimentaram desse fruto e tiveram melhoras em problemas como colesterol, refluxo, úlcera e asma. Nesse último caso, o benefício está associado ao elevado teor de vitamina C. Popularmente, o quiabo também é usado no tratamento de depressão e ansiedade

 

OUTRAS FONTES CONSULTADAS

A ORIGEM da Culinária Mineira: 300 anos de receitas bem guardadas. Disponível em: http://zip.net/bjtqWy

OFERENDAS e comidas dos Orixas. Disponível em: http://zip.net/bvtrlg


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segunda-feira, 8 de maio de 2023

MEMÓRIA CULTURAL - Povos Indígenas ou dia do Índio?



Anualmente no mês de Abril, costumamos a ver projetos com suas atividades voltadas para homenagem ao dia dos povos indígenas, alguns profissionais nem sabem da alteração do dia 19 de abril, não é mais “dia do Índio, mas através da Lei 14.402/22 agora é “dia dos Povos Indígenas”. A justificativa desta lei tem o propósito é reconhecer o direito dos povos, mantendo e fortalecendo suas identidades, línguas e religiões, assumindo tanto o controle de suas próprias instituições e formas de vida quanto de seu desenvolvimento econômico.

           Assim é possível ouvir Maria Luiza Moreira ou simplesmente Luiza Aranã,  mulher que honra sua etnia, falando sobre seu povo e suas transformações ao longo de sua experiência, numa linguagem simples e real. Pois, desde os anos de1990, sua família  se autodeclarou  pertencente ao povo originário, da região do Vale do Jequitinhonha. Ela é cabelereira e artesã de produtos indígenas; cursou seus primeiros estudos na zona rural; teve de interromper os estudos para trabalhar; depois de certo tempo, ingressou-se no EJA, momento que pode concluir o segundo grau, junto ao seu marido. Isto reforça o movimento que o cidadão, pertencente de povo originário precisa trilhar para não ser vítima da exclusão social, econômica  e política.

 O povo da etnia indígena Aranã, que já foi considerado extinto, atualmente  se encontram dispersos em áreas rurais e urbanas de Minas Gerais e São Paulo.

 Diante destas fontes vivas, é preciso orientar nas escolas desde cedo que a figura estilizada do índio é irreal; trazer para dentro das escolas palavras como  “desadeados”, ao invés de reforçar a ideia que todo índio vive da lavoura de subsistência, se nem terra ele tem mais.

           O trabalho com grafísmo indígena, talvez seja importantes alternativas para substituir a forma agressiva de se tratar a figura indígena, bem como a mostra de artesanato, filmes e fotografias. São recursos que atestam a realidade em que vivem atualmente, com dignidade.

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segunda-feira, 10 de abril de 2023

MEMÓRIA CULTURAL - Artesão do Sertão


 

Em 30 de maio, de 2021 publicamos uma matéria com o título “Seu Tião e a arte do sertão”. A importância de se escrever é simplesmente: Deixar registrado um pouco de quem somos e como somos gente de labuta, nem sempre sabemos o que escrever para não entristecer as pessoas. Mas escrever sobre pessoas é uma tarefa de muita responsabilidade, é como tirar o retrato, pegar sua essência e escrever aquilo que melhor condiz com a sua pessoa.

Foi assim com Sebastião Moreira, que se declarava “Caboclo” por ter nascido em uma geração “misturada”, como ele explicou na época, ou seja, processo de miscigenação do índigena, negro e branco, da região de Coronel Murta.

A importância de ter um movimento cultural ativo e atento, não apenas pela sua amostragem de produção artística. Este senhor nascido em 1945, nos rincões deste sertão, trabalhou no campo em boa parte de sua vida. Trocou as brincadeiras de menino para trabalhar duro na roça e lutar pelo sustento da família. Mas através de sua filha Maria Luiza Moreira ou “Luiza Aranã”, que teria apresentado o mundo das artes, em eventos culturais e ao seu primeiro FESTIVALE, na cidade de Capelinha. A partir daí aquele homem resolveu pegar sua carapuça do menino arteiro e resolveu brincar de novo.

 Em 2010, na cidade de Padre Paraíso, o homem não era mais Sebastião, virou “Tião –Artesão da Itira”. Sua coleção de animais silvestres, canoas, canoeiro, imagens de Nossa Senhora e São Francisco. Tudo feito em madeira morta, trabalhada com sua técnica de esculpir, comunicação entre o imaginário e infância.

Quando foi convidado para levar suas peças para “Exposição Aparecida – 300 anos”, em Belo Horizonte no Centro de Arte Popular – Cemig, e cumprimentar o Secretário Estadual de Cultura da época, Angelo Osvaldo. Revelou tamanha gratidão pelo reconhecimento, não por ser homenageado somente, mas por mostrar a sua devoção compartilhada com outras pessoas, inclusive por uma autoridade do estado.

Segundo dele:__”Fazer os bichos do mato é como dar vida, pena que eles não possam voar de verdade! E fazer uma peça de santo é como uma reza, uns gostam de segurar no rosário para rezar, e, eu rezo dando forma ao santo de minha cabeça”(não segurando a risadinha marota, abaixa a cabeça, num gesto de menino acanhado).

Assim se encerra um ciclo de vida, do homem que foi Sebastião Moreira, em 09 de Abril, de 2023, mas o menino “Tião” agora segue brincando com seus bichos de seu sertão, festejando nas folias, do mundo espiritual, com Sâo Francisco e a  Virgem Maria.

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domingo, 9 de abril de 2023

GIRO PELO VALE - Vale do Jequi de luto ,Faleceu seu Tião Artesão


 

É com muito pesar que comunicamos o falecimento do artesão Sebastião Moreira Santos ,

Seu Tião como gostava de ser chamado, revela  despontou e se descobriu neste ofício de artesão , acompanhado pela sua companheira que também aprendeu o ofício.

Nascido na Fazenda Santa Rita,  em 20 de abril de 1945, município de Coronel Murta, a história de sua família remonta ao processo de miscigenação entre índios, negros e brancos trabalhadores da região de Coronel Murta. Seu Tião se autodeclara “Caboclo”.

Foi casado com uma descendente dos povos originários Aranãs, no qual constituiu família, mas depois se separou da sua esposa.

No final dos anos de 1990, passou a acompanhar sua filha Luíza Índia Aranã, em eventos culturais, expondo peças como colares, brincos e pulseiras que representam a sua etnia indígena.  

Com o tempo resolveu criar suas próprias peças, no qual fazia quando criança para brincar, peças feitas de madeiras: Figuras humanas e os bichos que ele observa nas matas do cerrado do Vale do Jequitinhonha.

Sua primeira exposição a convite da diretoria da FECAJE na época foi no FESTIVALE, do ano de 2010, na cidade de Padre Paraíso/MG. A arte, que ele gostava de fazer desde criança, para sua emoção foi muito bem recebida, todas as peças foram vendidas.

Ele se sentiu muito valorizado, e resolveu seguir desenvolvendo e aprimorando seu trabalho.

Revela para confeccionar sua peças sempre usou  madeira seca de arvores já morta, preferencialmente a emburana, por ser leve e fácil de manusear.  Conta que cada peça é batizada por um nome, seu trabalho já foi até para o exterior.

Em 2017, houve uma exposição em Belo Horizonte, denominada  de  “Exposição Aparecida – 300 Anos”, no  Centro de Arte Popular – Cemig, integrante do Circuito Liberdade, ele se sentiu muito lisonjeado pelo convite.

Tive a honra de convida- lo para sua primeira exposição  quando ajudei a coordenar a Feira do Festivale.

Morre o homem e fica seu legado como artesão, pai , esposo e um amigo que contribuiu para o fortalecimento da cultura só Vale do Jequitinhonha e de Minas Gerais.

Vai na luz meu amigo......




 

 

quinta-feira, 23 de março de 2023

DIÁRIO DE LEITURA - Dica de leitura , livro " Solitária "


 

 Recentemente lançado pela Companhia das Letras, o conto da escritora Eliana Alves Cruz “Solitária”, conta a história de Mabel e Eunice, duas mulheres negras, mãe e filha, que moram no trabalho, um condomínio de luxo desses encontrados em qualquer grande cidade brasileira. Eunice, a mãe, é testemunha-chave de um crime chocante ocorrido na casa dos patrões. Mabel, a filha, constrói o caminho que leva não apenas à elucidação deste crime, mas a uma mudança radical na vida das pessoas que cercam as protagonistas. Em prosa ágil, intensa e assertiva, Eliana Alves Cruz constrói uma miríade de histórias que revolve o imaginário do trabalho doméstico no Brasil — ainda tão vinculado à época escravocrata — e o relaciona a questões contemporâneas urgentes como a pandemia, o debate sobre ações afirmativas e a luta por direitos reprodutivos.

Solitária, de Eliana Alves Cruz, constitui-se como uma narrativa que tira o leitor do lugar. Espacialmente, pois nos transporta ao edifício Golden Plate, mais especificamente ao apartamento da cobertura que ocupa todo um andar, onde vive a família de D. Lúcia: “aquela residência parecia mesmo: um cenário” (p. 16). Simbolicamente, porque nos possibilita compreender o espaço e ações narrativas que nele ocorrem, por meio de uma perspectiva inovadora: via personificação dos ambientes domésticos. Ainda, deixa muito claro para nós que a ficção espelha, e se espelha, na realidade, e vice-versa.

Os capítulos do romance receberam títulos que fazem referência direta à organização, disposição e funcionalidade dos espaços: piscina, escritório, cozinha, quarto de despejo, criada-muda. Este é o “cenário” de um crime mencionado já no começo do livro, mas que nós, leitores, iremos desvendar enquanto caminhamos pelas páginas-espaços.

Na primeira parte, a história é narrada pela perspectiva de Mabel, que ainda criança adentrou com a mãe, pela porta de serviço, o apartamento, e com ela dividiu a cozinha e o quarto de empregada; também lá, fez amigos, amores, e viveu dissabores, principalmente, em se tratando da relação com Camila, a filha dos patrões. É no espaço da cozinha que Mabel e sua mãe comemoram uma grande conquista: a aprovação da jovem no vestibular, o que transformam ambas, principalmente porque Mabel reflete: “Eu e mamãe continuávamos ali, na gaiola dourada do edifício Golden Plate. Éramos pássaros dentro de um viveiro luxuoso, mas uma jaula não deixa de ser vilã da liberdade só porque é pintada de dourado?” (p. 69). Aquele é também um cenário de aprisionamento.

Na segunda parte do romance, a história é narrada pela perspectiva de Eunice, por meio da qual se constrói uma linha temporal que ilustra a trajetória do trabalho doméstico no Brasil: da senzala ao quarto de despejo. A mãe de Mabel, no auge do seu/nosso processo de reflexão, afirma, relembrando a trajetória das mulheres de sua família: “além dos espaços apertados que ocupávamos, o silêncio era um companheiro. Era preciso estar presente sem estar. Uma boa serviçal é silenciosa, e a criança que é filha dessa mulher também deve ser” (p. 97). Todavia, alimentada pela partilha da leitura pela filha, pondera: “era como dizia num dos livros de uma escritora chamada Conceição Evaristo, que Mabel passou a devorar e de vez em quando lia pra mim: ‘em boca fechada não entra mosquito, mas não cabem risos e sorrisos’” (p. 97). Aquele é também um cenário de tolhimento.

Já a última parte – Solitárias – os lugares nos quais Eunice e Mabel viveram, bem como aqueles pelos quais passam a transitar são personificados, e pela voz narrativa deles outro olhar sobre as páginas-espaços é possível: Quarto de empregada, Quarto de porteiro, Quarto de hospital, Quarto de descanso, sinalizando uma transformação, uma nova vida, cujo crime ocorrido no Golden Plate parece ter sido um dos desencadeadores. Surge um novo espaço de vida, conquistado por duas mulheres – mãe e filha – que juntas passam a reconhecer e a revelar a mentalidade elitista, traduzida em muitos discursos e ações que, aparentemente em prol da igualdade, visam a permanência de cada um em seu lugar e que traduzem muito bem os nossos tempos: a empregada que a patroa afirma ser “considerada da família”, a demonização das cotas raciais, o julgamento sobre as decisões sobre o corpo da mulher negra, as bandeiras do Brasil estendidas nas janelas, enfim. É lindo ler que na última parte Eunice e Mabel estão livres! Ambas estão livres também do peso de “serem gratas” e, em virtude disso, serem levadas a proteger quem seria a responsável pelo crime: a morte de uma criança, no pátio luxuoso do Golden Plate.

 

Referência

https://www.revistabula.com/57068-os-10-melhores-romances-brasileiros-de-2022/

CRUZ, Eliana Alves. Solitária. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

 

* Elisangela A. Lopes Fialho é mestre em Teoria da Literatura pela UFMG, Doutora em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC-Minas, professora do IFSULDEMINAS - Campus Pouso Alegre e pesquisadora da literatura afro-brasileira e da prosa de Machado de Assis. É coautora de Literatura afro-brasileira: 100 autores do século XVIII ao XXI (2. ed., 2019), Literatura afro-brasileira: abordagens na sala de aula (2. ed., 2019) e de Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica (2Reimpr., 2021).

Link para texto completo

http://www.letras.ufmg.br/literafro/arquivos/autores/Eliana_Alves_Cruz_resenha_Elis_Solitria1.pdf

 

 Por



O sonho do Instituto Federal Quilombola

    Arte: Jashad Macbee Depois de meses de lutas, expectativas, articulações e medos, no coração da renovação educativa e cultural do Br...