quinta-feira, 30 de setembro de 2021

DIÁRIO DE LEITURA – Série: Dica do Leitor

 


OBRA

Título: O Decamerão

Autor: Giovanni Boccaccio

 

SINOPSE

Raríssimas obras têm o privilégio de fundar uma tradição. O Decamerão, de Giovanni Boccaccio, é certamente uma delas. Escrito em meados do século XIV, ele estabelece um padrão para o que viria a ser o conto ficcional. O livro reúne cem narrativas contadas por sete damas e três cavalheiros que, a fim de escapar da peste que assolava Florença, se recolhem numa vila senhoril e, para passar o tempo e celebrar a vida, narram histórias uns aos outros. As cem histórias desta obra monumental versam sobre os mais variados traços da vida humana, com suas riquezas e contradições, suas paixões e armadilhas. A obra-prima de Boccaccio, ao se desprender da moral medieval e abrir caminho rumo ao realismo, tornou-se um marco singular na literatura e uma fonte de influência para luminares como Shakespeare e Cervantes, além de muitos modernos que vieram posteriormente.

 

RECOMENDAÇÃO

Como descreve Eduardo Bizzari na introdução da edição da Nova Fronteira, as cem narrativas presentes no livro “vão do conto complexo, rico de enredo, à simples anedota e à piada; obedecem às mais variadas inspirações, do cômico ao trágico, do burlesco ao heroico; tratam dos mais diferentes assuntos.” Todas um deleite para o leitor.  

Como um apaixonado por História e por histórias essa obra foi um marco na minha formação como leitor.

Recomendá-la é, além de uma obrigação, uma esperança de que possa convencer mais pessoas a desfrutar de uma dos maiores clássicos da literatura mundial. Para além de uma recomendação, o que faço é um desafio: Permanecer incólume após a leitura de O Decamerão.

 

Jorge Ettore

Jorge Ettore nasceu em 8 de julho de 1980, em Medina - MG, e sempre residiu em Comercinho-MG. Fez toda sua educação básica na Escola Estadual Alphonsus de Guimaraens. Iniciou sua carreira de professor em 1999 logo após concluir o curso de Magistério nessa instituição. Trabalhou na Escola Família Agrícola Vida Comunitária onde foi profundamente marcado por sua pedagogia da alternância. Fez faculdade de História e Pedagogia pela UNIMONTES. Atualmente é professor da Rede Municipal de Comercinho e da Rede Estadual de MG. É casado e pai de três filhos.

Desde cedo mostrou grande interesse por livros. Teve seu primeiro contato com o universo literário através da biblioteca da escola e desde então sempre carrega consigo alguma obra. Entre suas preferências estão os grandes clássicos e a fantasia.

 

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terça-feira, 28 de setembro de 2021

O ASSUNTO É? - Ibejis

 

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Duas crianças, dois Ibejis. Por todo o Brasil, no dia 27 de Setembro, comemora-se o dia de Cosme e Damião,  santos populares muito cultuados. Cosme e Damião teriam sido dois irmãos gêmeos médicos que atuavam na região da Ásia Menor, nos primórdios do Cristianismo. Atendiam crianças sem cobrar e foram mortos por um imperador romano, passando a ser considerados santos pela Igreja Católica.  Os africanos e africanas escravizados/as e trazidos/as para estas terras em diáspora forçada eram proibidos de praticarem suas tradições religiosas, por isso, sincretizaram nos santos gêmeos católicos Cosme e Damião as entidades Ibejis representadas pelas crianças gêmeas, Taiwo e Kehinde, muito alegres e auspiciosas da tradição Yorubá. Dentre as várias histórias sobre os Ibejis, uma narra que, certa vez, faltou água na região onde moravam, as plantações começaram a morrer, a tristeza tomou conta de todos, ninguém conseguia encontrar água. As crianças gêmeas brincavam de cavar no quintal, na verdade estavam procurando água. Tanto fizeram que acabaram encontrando o precioso líquido, encheram cântaros, vasilhas diversas, a população enfim conseguiu molhar as plantações, matar a sede da comunidade e dos animais. A vida voltou a fluir com as águas. Desde então, os ibejis representam fortuna, abundância e alegria.  As pessoas que são devotas costumam distribuir sacolinhas de doces para as crianças. Lembro-me de que este dia era muito feliz na minha infância no início da década de 1990, tempo de inflação alta, carestia e muitas famílias vivendo em situação de miserabilidade. Uma das minhas tias residia na Vila atrás do cemitério em Montes Claros, onde a gente ia com nossa mãe passar os finais de semana. A comunidade era apelidada de favela e muito mal vista no entorno, as  crianças da Vila viviam revirando o lixão atrás do cemitério, era muita vulnerabilidade social naquele lugar. Próximo de lá, numa Chácara, havia uma casa de Umbanda, onde as crianças da Vila iam participar da festa de Cosme e Damião e pegar as desejadas sacolinhas no dia 27 de Setembro. Ao pegar os doces no dia de Cosme e Damião, os pequenos sentiam-se confortados, era um sopro de esperança e atenção num cotidiano marcado pela negligência. Ainda recordo do conteúdo: tinha Maria mole, um pacotinho de pipoca doce, pirulitos, chicletes, balas, suspiros de morango e um pedaço de banana. Se não me engano era o do terreiro de Chico Preto, célebre pai de Santo de Montes Claros. A gente comia os doces com vontade e satisfação, apesar das falas preconceituosas dos adultos que demonizavam as práticas religiosas de matriz afro-brasileira. Esse dia me faz refletir sobre como as práticas religiosas africanas se enraizaram fortemente nestas terras e produzem frutos de amor, convivência e solidariedade. Viva Cosme e Damião! Bejé ó ró! La ô!

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quinta-feira, 23 de setembro de 2021

DIÁRIO DE LEITURA - Entre tropeços e recomeços

 

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Alex Konrado

 

Já parou para refletir sobre a importância que tem a sua vida? Ainda não? Pois bem, a vida com certeza é um grande presente que nos foi dado com um determinado objetivo. É muito comum perguntarmos o porquê de estarmos vivos, qual o sentido de nossas vidas.... Em um momento ou outro, somos levados por essas reflexões.

A questão é: todos passamos por experiências únicas. Fato que faz de nossas vidas, uma diferente das outras. Os desafios que cada um de nós enfrentamos, são necessários para nos trazer os aprendizados que precisamos. Muitas vezes, passamos por dificuldades que nos deprimem, causando tristezas e sofrimentos.

Em meio aos percalços... as dúvidas, as angústias, os medos, nos assombram. É quando estamos mais expostos às fragilidades que residem em nós mesmos. Mas, justamente por esta ser uma fase desafiadora, é que ela também se torna, uma fase onde somos obrigados a descobrir potencialidades que muitas vezes, imaginamos não possuí-las.

Para voltar às bonanças, temos que alimentar a confiança. Confiar na superação dos períodos de aflições é o segredo. Os recomeços, talvez sejam mais difíceis que os começos... Recomeçar, pressupõe um levantar-se novamente, reerguer-se, superar uma “queda” onde a nossa confiança foi testada. Quando saímos de qualquer crise com a confiança abalada, o “continuar”, se torna um grande problema.

Por isso, digo a você: Acredite! Acredite!

Já parou para refletir sobre a importância que tem a sua vida?

Ainda não?

Sua vida importa.

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terça-feira, 21 de setembro de 2021

O ASSUNTO É ? - Dia da Árvore

 


O contato com a natureza nos é benéfico, pois somos parte dela. Ter plantas no quintal e/ou dentro de casa é uma forma de estreitar os vínculos com a flora. Tal hábito vai é volta de acordo com as mudanças nos costumes. Considero interessante observar como a decoração das casas se altera de um período a outro, assim como todos os hábitos/atitudes humanas sofrem variações ao longo do tempo: formas de sociabilidade, vestimentas, relação com o corpo, vocabulário etc. Algo que agora é considerado bonito e elegante, em pouco tempo passa a ser visto como démodé. Até a palavra démodé já é considerada démodé, por ser é uma expressão muito usada nos anos  de 1980/1990. Aqui no Brasil, nas décadas de 1970 até a década de 1990, era comum o hábito de cultivar samambaias, avencas, jiboias e outras plantas dentro de casa. As donas de casa ostentavam vaidosas suas varandas e interiores ornamentados com imensas samambaias choronas, bem como com as jiboias que rodeavam a sala entrelaçadas aos quadros nas paredes. Zigônios (Syngonium angustatum) também eram apreciados, cultivados na terra ou na água. Havia também a brilhantina (Pilea microphylla), uma plantinha muito verde de folhas repicadas. Lá em casa, minha mãe plantava  suas brilhantinas em latas de conservas grandes que revestia com  papel ou plástico vistosos para enfeitar a sala. A jiboia lá de casa era imensa e  conduzida por pregos na parede que também seguravam quadros de retratos. Lembro-me  que corria uma lenda de que, se as duas extremidades da planta se encontrassem alguém da casa morreria. Desde a minha adolescência, gosto de cultivar plantas ornamentais e outras. Naquela época, meu irmão e eu plantamos um canteiro de lambaris roxos (Tradescantia zebrina), com zigônios e no centro uma roseira que produzia rosas matizadas, eram lindas. Aproveitei também para plantar uma muda de barriguda (Ceiba speciosa) que encontrei numa enxurrada. Quando a árvore começou a crescer e encorpar, minha mãe cortou, disse que o quintal era pequeno para uma árvore de tais dimensões. Realmente, nosso lote era diminuto para uma árvore que, em fase adulta, atinge uma ampla circunferência. O contato com as mulheres idosas foi muito importante para me incentivar a cultivar plantas. Em todas as casas de senhoras idosas  que eu ia, era orientada sobre cada planta, como fazer mudas e sempre ganhava muitas mudas. Com esse incentivo fui desenvolvendo o gosto pelas plantas. Hoje considero como terapêutico, sinto-me bem ao lidar com a terra e com as plantas, aprendo a ter mais paciência com as pessoas, pois assim como estas, as plantas necessitam de atenção, cuidado e paciência. Quem não pode esperar, não consegue cultivar. Tenho notado que o hábito de cultivar plantas dentro de casa tem se disseminado novamente. As plantas voltaram para o interior das casas, atualmente não podem faltar nos projetos de decoração de interiores. As famosas espadas de Ogum, lança de Ogum, espada de Iansã e todas as demais parentes das africanas Sansevierias além de belas e elegantes são tradicionalmente consideradas como plantas místicas, protetoras contra energias negativas, talvez pelo  fato de que são plantas que purificam o ar, retirando substâncias químicas e partículas diversas que circulam no ambiente, portanto, são ideais para cultivo interno. Quem gosta de pássaros e tem algum espaço no quintal, pode cultivar árvore frutífera de pequeno porte e/ou flores que atraem beija-flores. Pesquisas desenvolvidas por universidades do mundo todo tem demonstrado a importância do contato com as plantas e com a natureza de forma geral  para a manutenção da saúde, especialmente da saúde mental. E você, tem o hábito de cultivar? Como se sente no contato com as plantas?

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sábado, 18 de setembro de 2021

EscreVIVENDO – convida Hérica Silva

 


Na semana passada, conhecemos diversas lutadoras negras, por meio de uma resenha do livro “Heroínas Negras Brasileiras: em 15 cordéis”, de Jarid Arraes, o livro do mês do clube Leia Mulheres Araçuaí, do qual faço parte.

Como afirmei nesta resenha, a referida autora destaca a importância de estimular os/as seus leitores/as a fazerem cordel e, por isso, no fim deste seu livro, propôs que, quem a lê, escreva um também. Isto surtiu um lindo efeito no nosso clube, que agora apresento para vocês: Um cordel de Herica Silva, uma das coordenadoras do Leia Mulheres Araçuaí e uma grande escritora.

 

Marias Negras

( Hérica Silva)

Escrever um cordel,

É desafio sem fim.

São muitas as mulheres negras,

Importantes para mim.

Em alguns detalhes,

Vou começando assim.

 

Marlene Vieira,

Minha mãe querida,

Vou começar por ela,

Por quem mim deu a vida.

Mulher tão grande batalhadora,

Que sempre esteve na lida.

 

De mãos calejadas,

E nos pés as marcas do chão.

Desde a sua infância,

Lutando ao lado do sertão.

Cheia de vida, carregando sorrisos,

Disfarça a dor de seu coração.

 

Vieira de papai, Silva de sua mãe.

Tão jovem já começou a sofrer,

Nas batalhas do dia a dia,

Para ter o que comer.

Sua negritude não escondia,

E nós foi herdado a sua vontade de viver.

 

Maria Gomes, minha avó.

É outra história que quero lhe contar.

Mulher rude e sempre centrada,

Era a sua forma de lidar.

Lidar com a vida sofrida,

E com as marcas que teve de carregar.

 

A vó minha era um tanto embravecida,

Com ela pouca conversa tinha.

Nas suas lembranças as marcas da escravidão,

Seu passado que lembrava sozinha.

Nas cercas de pedras e nas valas,

Chorava a vó minha.

 

Quatorze filhos deu a luz,

Quatro deles ela teve de enterrar.

Na rugosidade de sua pele,

Ela partiu pra não mais voltar.

Maria rígida como seu passado,

Mas que nunca deixou de caminhar.

 

Maria Aparecida,

O sobrenome não vou saber.

Lembro dela vagamente,

Mas jamais iria mim esquecer.

Meu primeiro contato com a história,

Com ela fui aprender.

 

Era tudo de uma forma divertida,

As mulheres eram as donas da história.

Cida por nós conhecida,

Trazia relatos que não estavam na memória.

Enquanto ensinava fez a sina,

Das mulheres negras a nossa gloria.

 

Julia Gomes,

Um preta de muita luta.

Carrega toda sua ancestralidade,

No dia a dia da nossa labuta.

Foi quem me inspirou,

A entrar nesta disputa

E jamais abaixar a cabeça pra quem me julga puta.

 

Cristina e Sejana,

Mulheres de muita paz.

Elas deixam seu legado,

Em cada movimento que se faz.

Elas deixaram portas abertas,

E ladrilham caminhos para futuros reais.

 

Herena e Thaísa,

Reforçam os movimentos da sociedade.

Me estenderam a mão pelo caminho, 

Na busca pela nossa liberdade,

Uma nova era de valorização,

E luta pela igualdade.

 

Marilete e Cleide,

Colegas de faculdade.

Na escola nos conhecemos,

E vamos reinando para toda eternidade.

Com os mesmos ideais,

Seguimos na luta por uma nova realidade.

 

Por fim deixo um verso para ela,

Conceição Evaristo, das palavras de salvação.

São muitas as heroínas,

Quem trago no coração.

E com Conceição vou remando,

Alimentando os sonhos da minha geração.

 

Muito tinha para falar,

Neste singelo cordel.

Foi um pouco desafiador,

Falar das minhas pretas em um verso de papel.

O que eu queria mesmo, era ser como Jarid,

Para eternizar estas heroínas, além do nosso céu.

 

Herica Silva é natural de Araçuaí-MG, tem 21 anos e cursa a graduação de Engenharia Agrícola e Ambiental no IFNMG/Campus Araçuaí. Ela escreve romances, contos, poemas, etc. Ler sempre foi o seu refúgio, e ler mulheres vem sendo a sua libertação enquanto mulher e escritora. Autora do livro “Cartas para a Lua”, disponível em:

https://www.amazon.com.br/Cartas-para-H%C3%A9rica-Silva-Oliveira-ebook/dp/B08LC1FNNQ

Agenda












Colunista 



quarta-feira, 15 de setembro de 2021

OPINIÃO DO BLOG: Crônica Pele escura VIII

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Te entreguei pra nossa senhora. A medida que a história foi avançando e se construindo a história dos brancos, cada vez mais negros e outras etnias que formaram a base da nossa sociedade foram sendo excluídos e sua forma de viver submetido a um julgamento injusto e preconceito. Bem sabemos da importância da fé em todo percurso da história e como esta fé estimulou e confortou tantos corações aflitos. Carinhosamente Nossa Senhora tornou-se dos homens pretos. 

Era assim que mantinham a aflição e o sofrimento sarados pelas mãos da mãe que não fazia distinção e cada um podiam se expressar e fazer suas rezas. Cresci vendo minha mãe nos levando para as benzedeiras. De dor de dente a mal olhado, tudo era curado. E era. Da Duniza era a minha preferida, uma negra de voz forte e cabeça com trancinhas. Recebia a gente sempre com uma cara séria, hoje penso que era incômodo, toda hora chegava um pra que ela benzesse. 

Mas, também nunca vi alguém ser dispensado  por ela em nenhum momento procurado. Hoje perdemos, ou estamos perdendo essas raízes e nos apegando a uma descrença ou por racismo, porque poucos brancos aprenderam o ofício, ou porque poucos se dispõem a prestar tais serviços por medo de retaliação. A sociedade mesquinha e racista prefere zombar das rezas e dos terreiros por não conhecer a história e a necessidade de um povo largado muitas vezes pelas políticas públicas. 

E as orações tinham receitas. Rezavam e davam as recomendações. Não passar embaixo de cerca de arames com três fios, nem embaixo de cancelas, amarrar um dente de alho no dedo mindinho do lado do dente que dói. Certa vez numa dessas orações quando já não suportava a dor, fui lá e ao benzer ela me disse com toda certeza. Vai doer muito. Cheguei em casa e de tanta dor apaguei. 

E quando, muitos anos depois fui tratar daquele dente, identicaram uma bolinha ao lado do dente, sem dar explicação sobre o fato. De fato, algo sempre acontecia. Visitando uma senhora negra e passando por um momento difícil da minha vida, ela olhou firme para mim e disse com toda certeza. Já te entreguei pra Nossa Senhora.

Dá um alívio tão grande quando esta fé tica no fundo do coração. E não podemos simplesmente deixar acabar uma base sólida e linda na construção da nossa história. Ignorar a importância das mulheres e dos homens pretos e ignorar o alívio que essa gente trouxe pra cá e que mesmo no sofrimento acolhia o outro que sofria. As benzedeiras e parteiras em sua maioria pretas ajudavam porque vinham de uma prática de sofrimento. E fizeram até elitizarem a vida e deixar de lado aqueles e aquelas que com fé benziam


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terça-feira, 14 de setembro de 2021

O ASSUNTO -E - A infância


Criança comunidade Quilombola Córrego Narcisio/Araçuaí-MG

“Pra entender o erê, tem que tá moleque”. O que essa frase diz? À primeira vista, parece apenas um trecho de uma canção, porém, traz profunda reflexão. Primeiro, é importante saber que  Erê[1], na música,  é entendido como a criança.

Criança comunidade Quilombola
Córrego Narcisio/Araçuaí-MG

Há uma radical alteridade entre o mundo adulto e o infantil. A infância é uma dimensão da vida totalmente diverso da fase adulta. Para buscar compreender esse universo é preciso se colocar à altura da criança, exercitar a empatia, buscar relembrar a criança que você foi. Há uma tradição consolidada de se educar os pequenos com agressividade, com surras, violência psicológica, brutalidade. São práticas tão arraigadas que quando as questionamos somos repelidas/os com veemência. Dizem que a verdadeira educação se faz dessa forma. Será? A infância é um período da vida que necessita do amparo e cuidado. Os pequenos são frágeis fisicamente em relação aos já crescidos. Assim, é absurdo e desproporcional que um adulto bata numa criança. Deveria ser algo digno de vergonha.  As crianças não aprendem a serem boas pessoas com safanões, com beliscões e com pancadas, como é comumente defendido por muitos/as. Dados de pesquisa da Sociedade Brasileira de Pediatria mostram que cerca de 2.083 crianças foram mortas por agressão no Brasil entre 2010 e 2020, sendo que 80% desses ataques partiram de pais, mães ou outros/as “responsáveis”. A agressão e violência sofridas na infância, quando não mata o corpo, mata a alma. Tanto abuso repercute negativamente na idade adulta, sendo responsável por formar pessoas inseguras, com baixa autoestima, fragilizadas e até mesmo reprodutoras de violência. Muitos reproduzem tal padrão de “educação” sem refletir sobre seus efeitos nocivos. Respeito não se conquista através da imposição do medo. Será que queremos as futuras gerações com autonomia para protestar contra as injustiças ou apenas pessoas atemorizadas que obedecem a ordens sem questionamento? Acredito que para além do dever de respeitar e amar as crianças, devemos aprender com elas a paixão pela descoberta, a olhar o mundo com encantamento, nos colocarmos à sua altura e observar o chão, as pequenas pedras, as labutas das formigas. Ao experimentar   olhar a partir do chão para o alto, a perspectiva muda, o olhar é ampliado. Da mesma forma, precisamos lançar o olhar sobre nossas certezas limitadas sobre educação e tantas outras questões.  



[1] O Erê, no Candomblé,  é a energia do Orixá, em Iorubá significa brincar, por isso é associado aos Ibêjis, que são as crianças. Fonte: Fernando D’Osogiyan 


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sábado, 11 de setembro de 2021

EscreVIVENDO – Vamos conhecer Heroínas Negras Brasileiras?

 


“Nos registros brasileiros

A injustiça predomina

E o danado esquecimento

Na injustiça se culmina

Pois ainda não se acha

Tudo o que se examina

 

Esquecidas da História

As mulheres inda estão

Sendo negras, só piora

Esse quadro de exclusão

Sobre elas não se grava

Nem se faz menção”

(Jarid Arraes)

 

Você já ouviu falar de Aqualtune, Tia Ciata ou Mariana Crioula? Estas e outras mulheres negras incríveis são retratadas por Jarid Arraes no livro que ora resenho: “Heroínas Negras Brasileiras: em 15 cordéis”, o livro do mês do clube Leia Mulheres Araçuaí, do qual faço parte.

Desde quando iniciamos as atividades do Leia, em 2019, o nosso maior desejo e prazer foi conhecer e divulgar o máximo possível de escritoras, dos mais diversos gêneros literários e países. Já lemos livros de contos, de textos jornalísticos, de poemas, de história em quadrinhos e etc. Já tivemos acesso a obra de autora sueca, coreana, nigeriana, brasileira, estadunidense e por aí vai...

Quando nos deparamos com o cordel, o nosso coração se encantou. Este estilo arretado, gostoso, cativante, poético e de marca repentista popular nordestina, nos conecta bastante com a nossa região do Vale do Jequitinhonha. Seria nós, parte do nordeste brasileiro? Eu tendo a achar que sim, rs.

Nascida em Juazeiro do Norte, na região do cariri (CE), em 12 de fevereiro de 1991, Jarid Arraes é escritora, cordelista e poeta.  O pai e o avô são cordelistas. A autora afirma que o cordel a fez escritora, que a permitiu escrever outros gêneros. Seus cordéis envolvem temas de resistência, desde de temáticas feministas a lendas africanas.

O livro que comento aqui é fruto de uma pesquisa de Jarid sobre a história de grandes heroínas negras que marcaram o nosso país. Tratou-se de uma pesquisa, também, sobre a sua identidade, como mulher negra, que quis conhecer as suas raízes tão negadas no ensino das escolas, durante a sua infância.

Fico pensando o tanto de mulheres, assumindo o seu “black”, assim como hoje assumo, se reconhecendo e se autodeclarando como negras existiriam, caso pudéssemos ter acesso a história destas heroínas desde que nascemos. São elas: Antonieta de Barros, Aqualtune, Carolina Maria de Jesus, Dandara dos Palmares, Esperança Garcia, Eva Maria de Bonsucesso, Laudelina de Campos Melo, Luísa Mahin, Maria Felipa, Maria Firmina dos Reis, Mariana Crioula, Na Agontimé, Tereza de Benguela, Tia Ciata e Zacimba Gaba.

Dentre elas, encontramos quem é quitandeira, deputada, escritora, quilombola, princesa africana, mãe de santo, pescadora e muito mais. Cada uma, com a sua história, contribuindo para a construção do nosso país por meio da resistência.

Jarid destaca a importância de estimular os/as seus leitores/as a fazerem cordel e, por isso, no fim deste seu livro, ela propõe que, quem a lê, escreva um também. Isto já fez surtir um lindo efeito no nosso clube Leia Mulheres Araçuaí, fruto que apresentarei no próximo sábado....até lá, viu. Te espero.

 

Referência para a resenha: https://www.youtube.com/watch?v=SAt8nVhd6pw (MESA DE DEBATE – “Cordel: Tradição e reinvenção na escrita e na leitura”, com a presença de Jarid Arraes).

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quinta-feira, 9 de setembro de 2021

DIÁRIO DE LEITURA - Série Dica do Leitor

 




Ao receber o convite para falar sobre uma obra marcante do Vale, me deparei com a questão de conhecer tão poucas obras e autores, de não ter tanto o hábito de me dedicar à literatura do nosso Vale e não só dos grandes clássicos ou best-sellers.

Mesmo com essa falta de um conhecimento mais vasto, todas as vezes que pensava sobre o assunto o mesmo livro me vinha à cabeça, um livro marcante pela identificação que tenho com seu belíssimo conteúdo, com sua poesia presente no nosso dia a dia.

Herena Barcelos consegue extrair poesia de todas as pequenas coisas que sentimos e que passariam despercebidas no cotidiano corrido de nossas vidas. Em cada verso, em cada poema, acontece uma espécie de reconhecimento diferente com relação a nós mesmos ou de alguém à nossa volta.

Ah, “A menina e o rio”!!! Como me faz lembrar a minha juventude, quando, em momentos de tormenta, me sentava à beira do Jequitinhonha simplesmente para ter paz ouvindo o correr das águas, o cantar dos passarinhos, lendo um bom livro...

“In Verso e Acorde” é muito mais que um livro de poemas, é uma leitura da alma de cada itinguense, de cada um do Vale, não importa a cidade. Em cada linha que lemos, as imagens, sons, cheiros, lembranças vêm à tona em nossa mente e em nosso coração. Herena dá voz à “gente sabida, erudita, que às vezes nem sabe ler”... Ela nos faz refletir sobre “a chuva que para, o sol que paira e a seca que queima”; nos mostra o valor de nossa vida simples, do nosso povo sofrido, o valor da poesia e da arte que aqui existem.

Enfim, ela nos ensina que a poesia nunca morre...


 Dica de leitura de:

Cristiana Versiani Leite.

Professora de Língua Portuguesa nas escolas: E. E. de Itinga e E. M. Armínio Inácio. Aprecia a literatura desde sua infância quando recebeu um livro encantador de presente de sua mãe (O burrinho alpinista); por influência de sua vó Clarice, que recitava como ninguém versos e prosas que aprendeu ao longo da vida; e também por descobrir que a literatura é uma ótima ferramenta para fugir da realidade e conhecer novos  mundos.


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quarta-feira, 8 de setembro de 2021

OPINIÃO DO BLOG - "A independência somos todos nós"

 


A muito tempo atrás um lema forte ecoou pelo Brasil no dia 07 de setembro, chamando o povo á responsabilidade de gerir uma nação forte e independente. 

O tempo passou o brado foi abafado pelo silêncio, pela intransigência e pela intolerância. A Independência grita, proclamada e desejada por D Pedro desceu rio abaixo com todo o vigor político de uma nação. E passamos a comemorar uma utopia. 

Passamos a celebrar o vazio. Pois, continuamos a mercê de uma ideologia doentia e sem nexo. Depois de tudo e todos e a revelia vemos uma nação tombar pela incompetência política colocada a ferro e fogo sobre uma história de construção do ser que busca de fato uma independência de gênero, religiosa, política, ideológica e humana. 

É preciso olhar com firmeza para um horizonte iluminado onde homens e mulheres caminham juntos, constroem juntos a independência da nação. Ficamos muitas vezes de braços cruzados, a pesar de fortes, nos esquivamos, apesar de não fugir da luta. E contamos com um acaso de vida e de ciências para ver se vai dar certo. 

Estamos estagnados, desacreditados e aquém da luta. O cavalo de outrora tornou-se a fibra ótica que transporta os novos rumores de independência. Falamos tudo, vemos tudo e bem tudo sabemos. 

Erguer a voz ao invés da espada, erguer o conhecimento ao invés da truculência e assim vamos ultrapassar os rios de incompetência que nos rouba a liberdade e continua nos prendendo e impedido de sermos sujeitos de uma história cheia de conquistas e realizações. O grande de cada um de nós é acreditar que é possível que a Independência somos todos nós.

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terça-feira, 7 de setembro de 2021

O ASSUNTO É - Sete de Setembro

 


Escrevo às vésperas do dia Sete de Setembro, data em que se comemora a independência do Brasil. Convém relembrar, em linhas gerais, como se deu esse marco na história nacional. A independência do Brasil ocorreu sem uma ruptura radical com Portugal, haja vista que também não houve mudança na organização política e social. Nesse processo, mantiveram-se elementos estruturais, como um herdeiro português no trono, a monarquia, a escravidão e a concentração fundiária. Podemos dizer, então, que a independência do país beneficiou a poucos. O processo de independência foi negociado pela Inglaterra, o Brasil torna-se independente, porém, com uma enorme dívida externa e acordos econômicos marcadamente prejudiciais para a economia nacional. Só no final do século XIX a escravidão foi abolida no país, sem indenização e garantia de acesso à terra e inserção social para as pessoas ex-escravizadas. Para os inúmeros povos indígenas que já habitavam estas terras no momento da invasão europeia, desde aqueles tempos até o presente, restaram só ataques constantes e invasões aos seus territórios, genocídio e etnocídio. Durante séculos, a educação não foi acessível ao povo, nem a publicação de livros e jornais era permitida nestas terras. A educação e o acesso aos livros, por serem revolucionários, foram e ainda são negados ao povo. Cada pequeno aceno de transformação social que vise beneficiar aos/às excluídos/as logo é sufocado por algum golpe.

Cá estamos nós em 2021, ouvindo ameaças das nossas “elites” do atraso à Democracia, enquanto o povo sofre com a inflação, desvalorização salarial e aprofundamento da desigualdade social.

 Se temos algo a comemorar neste Sete de Setembro são os inúmeros movimentos de resistência que o povo brasileiro tem organizado ao longo do tempo: Quilombos, Revolução dos malês, Cabanagem, Revolta de Canudos, Revolta de Contestado, além dos movimentos indígenas, movimentos negros, movimentos de mulheres, movimento de trabalhadoras e trabalhadores sem- terra, movimento operário etc. Apesar da repressão e exploração, o povo brasileiro luta, trabalha e acredita em dias melhores, no fortalecimento da democracia com justiça social, pois sem esta “a democracia é fraca, e como tudo que é fraco, um dia morre”, como escreveu Carolina Maria de Jesus

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quinta-feira, 2 de setembro de 2021

DIÁRIO DE LEITURA - Maça do Amor

 


É o olho que faz o horizonte.

(Ralph Waldo Emerson)

 

 

Vou contar uma história sobre a minha cidade. E conto com muito respeito e amor.

 

Desde que me entendo por gente, dou notícia de uma certa festa popular, a mais democraticamente popular que vejo por aqui. Que vejo por aí também.

 

Existe aqui um dia, na verdade não é exatamente um dia, mas um inespecífico conjunto de dias que se tornam um tempo só: sete-de-setembro. Que com nosso sotaque preguiçoso se torna set-setemb. Não importa se você está no dia 06 ou no dia 08, você sempre está em sete-de-setembro. E ainda mais, de acordo com as nuances do calendário, sete-de-setembro pode buscar os dias 05 ou 04, ou se estender até o dia 10.

 

E se você achou estranho até aqui, imagine quando souber que sete-de-setembro se tornou também um lugar.

 

Assim, cabe a mesma resposta para perguntas diferentes: Quando você comprou? Em sete-de-setembro. Onde você vai? Para sete-de-setembro. Porque você comprou? Ora, porque era sete-de-setembro. Sim! Isso mesmo, PORQUE era. O que a principio soa estranho, é na verdade encantador: não consigo imaginar, no momento, algo mais genuinamente cultural do que um dia que renomeia outros dias, torna-se um tempo, torna-se lugar e até um motivo.

 

Evidentemente não é comum perguntar a alguém porque comprou algo. Aqui é. E é por um simples motivo, a nossa tendência especial de comprar coisas desnecessárias por sete-de-setembro. Por.

 

Ah, sim! Que péssima anfitriã sou eu. Não apresentei ainda a festa a vocês. Vamos por partes. As compras. As compras, embora representem apenas uma das muitas facetas da festa, são por si uma verdadeira epopeia. Muita gente da cidade, e até da região, junta dinheiro o ano todo – ou pelo menos uma parte dele – para comprar nas barraquinhas. Uma das principais Avenidas, é totalmente tomada por camelôs. É a Avenida de entrada da cidade, o que complica a entrada e saída, as linhas fixas de ônibus não chegam ao outro lado, é preciso fazer um desvio. Não tem problema. A cidade entende. Enfim, nas barracas vende-se de camisola a panela, de martelo a cueca, de cachorro-quente a maçã-do-amor, de ioiô a walkman.

 

Eu sei, não se vende mais walkman, mas quando eu era menina sim. Na verdade falei de propósito para inserir mais um tópico do âmbito comercial da festa, o da tecnologia. Sete-de-setembro acompanha todos os avanços tecnológicos, e, se quando eu era pequena (menor), não cabia em mim de felicidade mesmo quando tinha que usar uma caneta para ouvir novamente certa música favorita, já que o botão com essa função havia quebrado na primeira semana, muita gente posteriormente saboreou o gostinho de ouvir músicas no diskman, no mp3, e em toda gama de mp’s com números tantos.

 

Hoje você pode comprar capinhas para celular, baterias para celular e até celular! Brinquedos eletrônicos, brinquedos da moda, brinquedos bobos, brinquedos desnecessários – esses últimos aos montes. E é interessantíssimo como as crianças dominadas pela tecnologia, sofrem de algum encantamento repentino e voltam a adorar momentaneamente toda gama de brinquedos que outrora desprezavam: bonequinhos, bonequinhas, carrinhos de fricção, piões, minigames. E como depois querem esconder a todo custo que foram comprados na ocasião peculiar. É aqui que sete-de-setembro ganha quase uma personalidade. Como se todos os vendedores se fundissem num só. E a gente gritava: olha o sapato DE set-setemb.

 

Eu, criança, jovem, ou adulta, já passei horas ali, porque o dinheiro não era do tamanho da variedade de coisas que eu precisava urgentemente comprar. Ainda que nunca fosse usar. E você quer encontrar, entre centenas, todas as barracas que tivessem os produtos que queria, para se certificar de que está realmente comprando o, incrivelmente, mais barato. E, nessa busca, você encontra mais coisas que não estava procurando e que passa a precisar. E volta para casa com uma infinidade de coisas: um tamanco barulhento, uma blusa colorida demais, duas saias, uma bolsa, algumas panelas de guisadinho, duas toalhas, alguns eletrônicos, maquiagem, esmalte, coisas tantas que meus pais me obrigavam a gostar, umas coisas que tenho vergonha de gostar e uns acessórios, que sempre foi o que eu particularmente mais gostava.

 

Tinha sempre um cordãozinho com o nome da gente, seja com letrinhas de aço, de plástico ou em forma de dadinho. Como eu gostava desses cordões. Fazia questão de escolher cada letrinha, embora fossem todas muito parecidas. Voltava com três de muitas coisas. Por exemplo, três anéis, que só em casa eu percebia que eram todos praticamente iguais. Não eram só os anéis. Imagino que não era só comigo.

 

Sete-de-setembro é uma festa-data-local-motivo versátil. Há de tudo. Dois meses antes não se compra mais nada na cidade. Vou deixar para comprar em sete-de-setembro. E tudo que você precisa sabe que estará lá. Se você não encontrou, com certeza não procurou de acordo.

 

Há um ponto que eu adoro reparar: como o imaginário popular consegue convenientemente apartar a classificação cronológica da cultural. Embora o sete, fosse toda aquela facção de setembro, o sonho dos compradores compulsivos acontecia mesmo era nos dias 08 e 09. E embora todos saíssem de casa com destino à sete-de-setembro, inconscientemente eles sabiam que era nos dias posteriores à comemoração da independência que aconteciam as maiores liquidações. E já ouvi: depois que passa o dia 07, sete-de-setembro fica barato demais. E eu, que não concebia como algo podia ficar ainda mais barato do que eu tinha visto, traduzia isso para ‘de graça’. E ficava triste por não poder atravessar o rio mais uma vez e conseguir todos aqueles brinquedos pouquíssimo “brincáveis” que eu tinha desejado tanto ao visitar as barracas.

 

É, eu tinha que atravessar o rio. E de canoa. Nossa cidade é cortada ao meio, não milimetricamente, mas geográfica, social e culturalmente pelo Rio Jequitinhonha. Já houve tempo em que sete-de-setembro era a única ocasião de trégua entre as tribos do Capa-Bode e Capa-Jegue. Incrível como toda rixa sumia na áurea mágica da festa. Nós, do lado de cá, transitávamos tranquilos, sem medo de retaliação em “d’outro lado”. Hoje, com a construção da ponte, de certa forma tomamos tenência e as diferenças diminuíram como um todo. Mas, claro, em tempos de sete-de-setembro o amor fraterno se acentua. O que é facilmente observado na alegria com que as pessoas se esquivam, se espremem e são empurradas para transitar no bem pouco espaço de rua que resta dentre o amontoado de barracas.

 

Não é incomum ouvir ao fim do período sete-de-setembro, pessoas reclamando de dores pelo corpo, sobretudo nas pernas. Escrevo rindo – mas preocupada, claro – que, na verdade, para muita gente é a única ocasião do ano em que se pratica atividade física considerável. Para quem não tem preparo, passar 3 a 5 horas caminhando pela quilométrica extensão de sete-de-setembro pode ser estarrecedor. Mas vale ressaltar que se as pessoas não se preparam física, espiritualmente há todo um ritual, de escolher uma roupa fácil de ser sobreposta, uma sandália fácil de ser tirada, uma lista mental de todas as necessidades.

 

Os vendedores, esses se derramam, aos montes, fazem amizade entre si e com a população. Estava certa feita, em sete-de-setembro, em casa de minha tia, quando uma sua amiga vendedora foi visitá-la. Por saudade. Por amizade. Eles se conhecem pelo nome, trocam dinheiro em miúdos uns para os outros, olham as barracas de quem precisa sair, fazem festa e dormem ali. Ah, isso me atiçava. Eu sonhava poder dormir como umas crianças que eu via, ali, debaixo daquele fantástico mundo de tudo ‘embarracado’.

 

Só não sonhava com isso mais do que com as maçãs-do-amor. Eu não gostava muito de maçã, mas era o amontoado de maçã com açúcar mais gostoso do planeta. Apesar de não ter visto muitas maças-do-amor nos lugares do planeta por onde tenho passado.

 

Bom, sete-de-setembro não é sete-de-setembro se não faltar energia. Sempre e mais de uma vez, a escuridão toma conta de tudo e não quero escrever sobre o que pode acontecer nesse período de breu, para não julgar ninguém. É um festival de gritos, risadas e segredos. E quando chove então, a muvuca é total.

 

Em/no/por sete-de-setembro, seja nas compras, seja no desfile, seja na igreja, a gente encontra gente que não vê há meses, até anos. Gente da nossa cidade. Gente da região. Gente que mora fora. Gente que nunca veio. E fica todo mundo tão amigo, todo mundo cumprimentando todo mundo, uma beleza.

 

E aqui passamos para mais um pedacinho da festa. O desfile de sete-de-setembro. Algum desavisado pode imaginar que a referência à data seja exclusivamente pela independência da república, mas já tomou uma proporção tal ultrapassa o cívico e entra no íntimo da cultura popular. Não é o desfile de 07 de setembro, é o desfill-d-set-setemb. O desfile da festa-data-local-motivo sete-de-setembro. Da pátria e de Itinga. E é um momento de grande importância para a cidade.

 

O carinho é tanto que mesmo convivendo e até reclamando dos ensaios da fanfarra, que antecedem a festa, no dia do desfile toda a cidade e visitantes saem às ruas para prestigiar. Claro que a importância é relativa. Tem gente que desfila por nota, pra viajar, pra ter status. Mas acredite, os jovens desfilam voluntariamente, e nessa miscelânea de motivos, o que acontece é uma grande festa de democracia e civismo.

 

Acho bonito. Muitos jovens, e seus admiradores, e professores, e políticos, e autoridades, e cidadãos ativos e cidadão não tão ativos assim, toda cidade se reúne, e no fim das contas, grande parte desfila pelas ruas, junto aos pelotões, e celebra a Independência. E a Independência merece ser celebrada.

 

O dia 07, o cronológico, é feriado nacional, mas o dia 08 é feriado municipal. Não sei se é feriado porque é sete-de-setembro ou se é sete-de-setembro porque é feriado. Mas é feriado. Desde sempre. Desde que me lembro. Feriado da Padroeira. Nossa Senhora d’Ajuda. A Padroeira do bairro, cujo Padroeiro Paroquial é Santo Antônio. O dia 13 de junho também é feriado. Tudo bem. A gente entende. E se você vir a Festa Religiosa também vai entender porque Senhora d’Ajuda se tornou tão importante: tem bendito, tem procissão, tem cortejo, tem terço, tem missa, tem leilão, tem barraquinha (mais barraquinha), tem folia, tem alvorada, tem homenagem, tem coroação, tem benção, tem doação, tem partilha, tem romaria, tudo acontecendo junto e misturado na grande festa sócio-cívico-religiosa que é sete-de-setembro.

 

O pessoal vem de longe pra rezar, quilômetros de estrada de chão, quilômetros de asfalto. Os dois lados se unem. A capela celebra cheia, nos nove dias de novena, as honras à Mãe de Deus. A coisa é tão íntima que me disseram que houve até tempo em que as procissões passavam permeando as barracas.

 

E a gente reza, depois compra, depois ajuda a Igreja, depois dança, depois desfila, depois come, depois compra mais, depois reza mais.

 

Esse ano, o início das apresentações das bandas, à noite, esperava não apenas o fim das missas, mas também o fim das celebrações de Igrejas não católicas que aconteciam próximas ao sete-de-setembro. E não é preciso ser católico, nem mesmo Cristão, para ir às compras. Eu mesma, em pessoa, ouvi alguém contar que uma Senhora de outra Igreja fez doações para a Capela de Nossa Senhora d’Ajuda.

 

É a festa mais democraticamente acolhedora que já vi. Recebe todo credo, todo gênero, toda idade, toda classe, toda opção, toda condição, toda tribo, toda língua, todo ritmo, toda naturalidade, todo sotaque, toda cor, toda moda.

 

Confesso, envergonhadamente, que não sei por que a festa começou, nem quando. Na minha cabeça fechadinha ela sempre esteve lá, esperando que eu crescesse e atravessasse o rio, e fosse às rezas, e fosse às compras, e fosse à festa. Como um escritor que acorda, literal e conotativamente, e de repente vê um poema numa flor que sempre esteve ali, eu despertei. De repente eu notei que, como militante do movimento cultural, não dava o valor devido àquele pedacinho tão rico de cultura.

 

Pensei em todas as coisas que eu vinha fazendo automaticamente, rezando, cantando, dançando, comprando, como se aquilo simplesmente tivesse obrigação de ser. Não! Não é obrigação! É o estreito limiar entre o costume e a cultura. O costume ordena, a cultura convida. O costume come, a cultura saboreia. O costume acontece, a cultura vive. De repente, eu queria sim conhecer as razões por trás dessa bela festa do povo, sobretudo porque fiquei encantada de estar ali, no meio da história acontecendo.

 

A experiência do compartilhar, quando ele se dá de fato no prazer e não no mecânico, tem o gosto daquela maçã. Para alguns é maçã com açúcar derretido, para outros é maçã com açúcar e amor. Caminha-se muito, gasta-se muito, complica-se o trânsito, empurramo-nos muito, usamos nosso tempo. Mas tem amor. A experiência do compartilhar muitas vezes não faz sentido e por isso faz parte de um delicioso grupo, que se distingue dos outros no singelo detalhe da não-explicação. E não é, necessariamente, porque não têm explicação, mas porque não precisam.

Por



 






Agenda









Tomando Conhecimento – Jô Pinto proseia com Luis Santiago, 03 de setembro, 19h, no canal dos Poetas e Escritores do Vale do Jequitinhonha

 

Leia Mulheres Araçuaí, encontro de discussão da obra Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis, de Jarid Arraes, sábado, 04 de setembro, às 17h, via google meet, interessados pedir o link em @leiamulheresaracuai


GIRO PELO VALE - Caraí e o Vale de luto

Foto: UFMG É com muito pesar que comunicamos a passagem espiritual da artesã de Caraí, Dona Noemisa, uma baluarte do artesanato do Vale do...