quarta-feira, 5 de novembro de 2025

OPINIÃO DO BLOG - A importância da oralidade para os povos tradicionais do Jequi

Foto: Jô Pinto

 

A oralidade é o alicerce da preservação dos saberes tradicionais dos povos negro e indígena no Vale do Jequitinhonha, funcionando como tecnologia ancestral que transmite cultura, religiosidade, identidade e resistência frente à exclusão histórica.

No Vale do Jequitinhonha, região marcada por desigualdades sociais, a  cultural e a oralidade se impõe como ferramenta vital na perpetuação dos saberes desses povos. Mais do que meio de comunicação, ela é uma tecnologia social que articula memória, identidade e resistência. Em comunidades onde o acesso à escrita formal foi historicamente negado, a palavra falada tornou-se o principal veículo de transmissão de conhecimentos, práticas e valores.

A oralidade é memória viva e identidade, sustenta tradições como os Reisados, as folias, os cantos de trabalho, contos de encantamento e de Incelências, que não apenas entretêm, mas educam e reforçam os laços comunitários. Esses saberes são passados em rodas de conversa, festas populares e rituais, onde cada narrativa carrega ensinamentos sobre a terra, o corpo, o tempo e a ancestralidade. A cultura do Vale não se escreve em livros, ela se canta, se dança e se conta.

A religiosidade é espiritualidade como resistência, expressada em práticas como o candomblé, a umbanda, os rituais de cura e os cultos aos encantados, depende da oralidade para manter seus fundamentos. Os mitos, rezas e cantos são transmitidos por mestres e mestras, que guardam os segredos dos orixás, dos encantados e dos espíritos da mata. Essa espiritualidade oral é também uma forma de resistência à colonização religiosa e à invisibilização dos saberes não cristãos.

A oralidade fortalece os vínculos sociais, pois é por meio dela que se constroem redes de solidariedade, se compartilham experiências e se educam as novas gerações. Em comunidades quilombolas e indígenas do Jequitinhonha, a palavra falada é instrumento de organização política, de denúncia e de afirmação identitária. Ela permite que os saberes circulem mesmo diante da ausência de políticas públicas ou da marginalização institucional.

Em tempos de digitalização, é preciso reconhecer que a oralidade é uma tecnologia ancestral, sofisticada e eficaz. Ela permite a adaptação dos saberes ao contexto, a atualização dos ensinamentos conforme as necessidades da comunidade e a preservação de nuances que a escrita não alcança. A oralidade não é atraso, é inovação enraizada na ancestralidade.

A valorização da oralidade no Vale do Jequitinhonha é, portanto, um ato político e cultural. Reconhecer sua importância é reconhecer o direito dos povos negro e indígena de existir, ensinar e transformar o mundo a partir de suas próprias epistemologias. Em tempos de apagamento, a palavra falada é resistência.

Jô Pinto

Professor, historiador, poeta e escritor

 

Mesmo que queimem a escrita, não queimam a oralidade.

Mesmo que queimem os símbolos, não queimam os significados.

Mesmo que queimem os corpos, não queimam a ancestralidade.”

 

Negro Bispo 

 Filósofo, poeta, escritor, professor e ativista político brasileiro


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