quinta-feira, 26 de junho de 2025

DIÁRIO DE LEITURA - Tese de Doutorado de Thaisa Silva Martins

Foto: Arquivo Pessoal




Se o objetivo é compreender como as epistemologias negras têm tensionado as estruturas do conhecimento acadêmico, deixamos como dica a tese de doutorado de Thaisa Silva Martins, defendida no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), constitui uma leitura fundamental. Intitulada “Erguendo a voz: um ensaio sobre o enfrentamento à violência através das Escrevivências de mulheres negras”, a pesquisa configura-se como uma produção que articula rigor teórico, posicionamento político e elaboração estética, assumindo o compromisso de romper com o silenciamento histórico das mulheres negras no Brasil e em contextos pós-coloniais.

Logo nas primeiras páginas, a autora evoca a contundente afirmação de Marielle Franco — “Não serei interrompida” — como enunciado inaugural de um projeto epistemológico insurgente. Trata-se de um trabalho que reivindica o direito à fala e à escuta em um campo científico historicamente marcado por assimetrias de raça, gênero e classe. Martins adota o ensaio como forma e método, não por ausência de sistematização, mas como uma escolha intencional de ruptura com a normatividade acadêmica e com os paradigmas eurocentrados de produção de conhecimento. Seu texto performa uma escrita que se pretende situada, implicada e transformadora.

A noção de Escrevivência, cunhada por Conceição Evaristo, constitui o eixo conceitual em torno do qual se articula a análise da autora. Tal conceito, que compreende a escrita como prática enraizada nas experiências de vida de sujeitos negros — especialmente mulheres —, é mobilizado como ferramenta teórico-metodológica e política. Contra a tradição do distanciamento impessoal e da neutralidade epistêmica, Martins reivindica uma escrita que emerge do vivido, do corpo e da memória, e que se inscreve como ato de resistência e de reexistência. A autora se insere nessa linhagem, produzindo um texto que se recusa a apagar os corpos negros da história e da ciência.

O corpus da pesquisa é composto pelos relatos de violência presentes na obra Raízes: resistência histórica, publicada pela editora feminista Venas Abiertas. A coletânea reúne narrativas de mulheres negras brasileiras, que escrevem a partir de suas trajetórias. A análise recai sobre os trechos que tematizam formas de violência estruturante — racismo, estupro, escravização, patriarcado, pressão estética — cuja recorrência revela a permanência de estruturas de dominação que operam de modo interseccional. A leitura proposta por Martins vai além da exposição das violências: busca evidenciar o que se repete, o que ecoa, o que sobrevive na palavra escrita, mesmo sob condições de silenciamento.

Para além da análise textual, a tese constrói um sólido aparato teórico e histórico, por meio do qual insere a Escrevivência em um contexto mais amplo de crítica ao colonialismo, ao patriarcado e ao capitalismo racial. O diálogo com autoras e autores como Grada Kilomba, Aníbal Quijano, Silvia Federici e Angela Davis sustenta uma leitura crítica das continuidades entre o projeto colonial moderno e as formas contemporâneas de exclusão. Um dos momentos mais emblemáticos do texto é a retomada da imagem de Anastácia — mulher negra silenciada por uma máscara de ferro durante a escravidão — como figura paradigmática de uma violência que persiste, ainda que sob novas formas e dispositivos.

A tese assume ainda um caráter autobiográfico, na medida em que a autora insere sua trajetória pessoal e acadêmica no desenvolvimento da pesquisa. O processo de reconhecimento identitário como mulher negra atravessa a escrita e sustenta a escolha do objeto, da metodologia e da abordagem. Tal gesto evidencia uma concepção de ciência comprometida com a vida, com a ética e com a transformação social. A implicação da pesquisadora com o tema fortalece a dimensão política da obra e reafirma que todo conhecimento é situado, como argumentam teóricas feministas decoloniais.

Ler Erguendo a voz é, portanto, acompanhar um exercício de produção de conhecimento que desafia os cânones tradicionais da academia, reivindicando a legitimidade das narrativas negras como fonte de saber. A tese apresenta contribuições relevantes para os campos dos estudos de gênero, das relações raciais, da literatura afro-brasileira e das metodologias críticas e decoloniais. Constitui uma leitura incontornável para aqueles e aquelas que compreendem a escrita como instrumento de luta, memória e transformação.

A autora nos oferece uma obra que é, ao mesmo tempo, denúncia e proposição; um texto que ressoa como grito, mas também como esperança. Um trabalho que se insurge contra o epistemicídio e que, ao fazê-lo, ergue outras vozes — vozes que, há séculos, foram silenciadas, mas que seguem insistindo em existir.

 

Boa leitura!

 

 Acesse a tese completa: https://repositorio.ufjf.br/jspui/handle/ufjf/18707


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2 comentários:

  1. Que resenha ótima!! Parabéns Soll, excelente dica de leitura! Ainda não li, mas fui instigada a começar logo a leitura. Gratidão! Abraços

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    1. Agradecemos pela interação Neca Caldeira, é sem duvida uma ótima dica de leitura.

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