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Foto: Arquivo Pessoal |
Se o
objetivo é compreender como as epistemologias negras têm tensionado as
estruturas do conhecimento acadêmico, deixamos como dica a tese de doutorado de
Thaisa Silva Martins, defendida no Programa de Pós-Graduação em Serviço Social
da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), constitui uma leitura
fundamental. Intitulada “Erguendo a voz: um ensaio sobre o enfrentamento à
violência através das Escrevivências de mulheres negras”, a pesquisa
configura-se como uma produção que articula rigor teórico, posicionamento
político e elaboração estética, assumindo o compromisso de romper com o
silenciamento histórico das mulheres negras no Brasil e em contextos pós-coloniais.
Logo nas
primeiras páginas, a autora evoca a contundente afirmação de Marielle Franco —
“Não serei interrompida” — como enunciado inaugural de um projeto
epistemológico insurgente. Trata-se de um trabalho que reivindica o direito à
fala e à escuta em um campo científico historicamente marcado por assimetrias
de raça, gênero e classe. Martins adota o ensaio como forma e método, não por
ausência de sistematização, mas como uma escolha intencional de ruptura com a
normatividade acadêmica e com os paradigmas eurocentrados de produção de
conhecimento. Seu texto performa uma escrita que se pretende situada, implicada
e transformadora.
A noção de Escrevivência,
cunhada por Conceição Evaristo, constitui o eixo conceitual em torno do qual se
articula a análise da autora. Tal conceito, que compreende a escrita como
prática enraizada nas experiências de vida de sujeitos negros — especialmente
mulheres —, é mobilizado como ferramenta teórico-metodológica e política.
Contra a tradição do distanciamento impessoal e da neutralidade epistêmica,
Martins reivindica uma escrita que emerge do vivido, do corpo e da memória, e
que se inscreve como ato de resistência e de reexistência. A autora se insere
nessa linhagem, produzindo um texto que se recusa a apagar os corpos negros da
história e da ciência.
O corpus da
pesquisa é composto pelos relatos de violência presentes na obra Raízes:
resistência histórica, publicada pela editora feminista Venas Abiertas. A
coletânea reúne narrativas de mulheres negras brasileiras, que escrevem a
partir de suas trajetórias. A análise recai sobre os trechos que tematizam
formas de violência estruturante — racismo, estupro, escravização, patriarcado,
pressão estética — cuja recorrência revela a permanência de estruturas de
dominação que operam de modo interseccional. A leitura proposta por Martins vai
além da exposição das violências: busca evidenciar o que se repete, o que ecoa,
o que sobrevive na palavra escrita, mesmo sob condições de silenciamento.
Para além da
análise textual, a tese constrói um sólido aparato teórico e histórico, por
meio do qual insere a Escrevivência em um contexto mais amplo de crítica ao
colonialismo, ao patriarcado e ao capitalismo racial. O diálogo com autoras e
autores como Grada Kilomba, Aníbal Quijano, Silvia Federici e Angela Davis
sustenta uma leitura crítica das continuidades entre o projeto colonial moderno
e as formas contemporâneas de exclusão. Um dos momentos mais emblemáticos do
texto é a retomada da imagem de Anastácia — mulher negra silenciada por uma
máscara de ferro durante a escravidão — como figura paradigmática de uma
violência que persiste, ainda que sob novas formas e dispositivos.
A tese
assume ainda um caráter autobiográfico, na medida em que a autora insere sua
trajetória pessoal e acadêmica no desenvolvimento da pesquisa. O processo de
reconhecimento identitário como mulher negra atravessa a escrita e sustenta a
escolha do objeto, da metodologia e da abordagem. Tal gesto evidencia uma
concepção de ciência comprometida com a vida, com a ética e com a transformação
social. A implicação da pesquisadora com o tema fortalece a dimensão política
da obra e reafirma que todo conhecimento é situado, como argumentam teóricas
feministas decoloniais.
Ler Erguendo
a voz é, portanto, acompanhar um exercício de produção de conhecimento que
desafia os cânones tradicionais da academia, reivindicando a legitimidade das
narrativas negras como fonte de saber. A tese apresenta contribuições
relevantes para os campos dos estudos de gênero, das relações raciais, da
literatura afro-brasileira e das metodologias críticas e decoloniais. Constitui
uma leitura incontornável para aqueles e aquelas que compreendem a escrita como
instrumento de luta, memória e transformação.
A autora nos
oferece uma obra que é, ao mesmo tempo, denúncia e proposição; um texto que
ressoa como grito, mas também como esperança. Um trabalho que se insurge contra
o epistemicídio e que, ao fazê-lo, ergue outras vozes — vozes que, há séculos,
foram silenciadas, mas que seguem insistindo em existir.
Boa leitura!
Acesse a tese completa: https://repositorio.ufjf.br/jspui/handle/ufjf/18707
Por
Que resenha ótima!! Parabéns Soll, excelente dica de leitura! Ainda não li, mas fui instigada a começar logo a leitura. Gratidão! Abraços
ResponderExcluirAgradecemos pela interação Neca Caldeira, é sem duvida uma ótima dica de leitura.
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