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Dica de Leitura da Semana | “Louças de Família”, de Eliane
Marques: uma literatura que corta como porcelana trincada
Na
estreia de Eliane Marques no romance, Louças
de Família (vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura 2024 na
categoria Melhor Romance de Estreia), somos conduzidos por uma escrita que é ao
mesmo tempo lírica e insurgente. A autora, reconhecida por sua trajetória na
poesia, transborda sua maestria no uso da linguagem para criar uma narrativa
que pulsa como uma ferida aberta – ou uma memória que se recusa a cicatrizar.
A
história é contada a partir da perspectiva de Cuandu, uma narradora marcada por
heranças não convencionais: contas vencidas, memórias fragmentadas e um retrato
da tia Eluma, mulher negra, empregada doméstica, cuja morte inaugura o romance.
O que se herda, nesse caso, não são louros nem posses, mas silêncios
históricos, cicatrizes ancestrais e o peso de um passado que insiste em se
repetir no presente.
A prosa
de Marques é construída em espirais, numa espécie de fluxo de consciência
marcado por oralidade e lirismo. A autora experimenta uma forma narrativa que
subverte convenções do gênero, convocando a linguagem poética para falar de um
cotidiano atravessado pela dor, pelo afeto e pela resistência. A estrutura do
romance é deliberadamente fragmentada, como os próprios vínculos familiares que
retrata – reconstituídos com delicadeza e revolta.
Por meio
da integração de português, portunhol e iorubá, Louças de Família apresenta uma tessitura
linguística que espelha a pluralidade cultural da fronteira entre Brasil e
Uruguai, cenário pouco explorado na literatura nacional. Essa escolha estética
não é gratuita: ela dá voz a personagens que muitas vezes são silenciadas, apagadas,
relegadas à margem da história oficial.
A
ancestralidade, tema central da obra, é narrada não como um elemento místico,
mas como uma realidade concreta que molda vidas. As mulheres negras da família
de Cuandu repetem, geração após geração, uma trajetória marcada pela servidão a
famílias brancas. Esse ciclo parece se perpetuar como as louças herdadas –
frágeis, mas persistentes; belas, porém trincadas. A metáfora é poderosa: há
uma herança simbólica que carrega tanto afeto quanto dor, e a narradora tenta,
com palavras, romper com esse destino.
“Se
qualquer uma de vocês pisar o dedão do pé, direito ou esquerdo, em qualquer
cômodo do interior de qualquer das casas de família, nunca mais sairá...” –
alerta a voz narrativa. É uma advertência, mas também um chamado à consciência.
O romance inteiro é movido por essa tensão entre memória e ruptura.
Como
psicanalista, Eliane Marques introduz ainda uma interessante camada de análise
através do diálogo entre a narradora e sua analista, num embate que coloca em
xeque as fronteiras do cuidado, da escuta e da neutralidade quando se trata da
experiência negra. O livro toca com força questões como racismo estrutural,
meritocracia, branquitude e a própria possibilidade de elaboração subjetiva
para corpos historicamente violados.
Há um
grito contido – e por vezes explícito – contra a pacificação forçada, contra a
exigência de docilidade. A autora escreve contra a passividade: sua prosa é
indócil, não busca conciliação, tampouco o conforto do leitor. É uma literatura
que provoca, que exige escuta atenta e que reivindica o direito à complexidade
das existências negras.
As
imagens evocadas em Louças de
Família têm o poder de cortar – como a borda de uma porcelana
quebrada. Mas são também imagens que acolhem, que denunciam sem perder a
poesia, que revelam o inominável com uma força inventiva rara. Eliane Marques
entrega ao leitor uma obra profundamente necessária, que afirma: a literatura é
também território de memória, justiça e reexistência.
Boa leitura. Por
|
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