quinta-feira, 24 de abril de 2025

DIÁRIO DE LEITURA - Dica de Leitura “Louças de Família”

Foto: Internet

Dica de Leitura da Semana | “Louças de Família”, de Eliane Marques: uma literatura que corta como porcelana trincada

Na estreia de Eliane Marques no romance, Louças de Família (vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura 2024 na categoria Melhor Romance de Estreia), somos conduzidos por uma escrita que é ao mesmo tempo lírica e insurgente. A autora, reconhecida por sua trajetória na poesia, transborda sua maestria no uso da linguagem para criar uma narrativa que pulsa como uma ferida aberta – ou uma memória que se recusa a cicatrizar.

A história é contada a partir da perspectiva de Cuandu, uma narradora marcada por heranças não convencionais: contas vencidas, memórias fragmentadas e um retrato da tia Eluma, mulher negra, empregada doméstica, cuja morte inaugura o romance. O que se herda, nesse caso, não são louros nem posses, mas silêncios históricos, cicatrizes ancestrais e o peso de um passado que insiste em se repetir no presente.

A prosa de Marques é construída em espirais, numa espécie de fluxo de consciência marcado por oralidade e lirismo. A autora experimenta uma forma narrativa que subverte convenções do gênero, convocando a linguagem poética para falar de um cotidiano atravessado pela dor, pelo afeto e pela resistência. A estrutura do romance é deliberadamente fragmentada, como os próprios vínculos familiares que retrata – reconstituídos com delicadeza e revolta.

Por meio da integração de português, portunhol e iorubá, Louças de Família apresenta uma tessitura linguística que espelha a pluralidade cultural da fronteira entre Brasil e Uruguai, cenário pouco explorado na literatura nacional. Essa escolha estética não é gratuita: ela dá voz a personagens que muitas vezes são silenciadas, apagadas, relegadas à margem da história oficial.

A ancestralidade, tema central da obra, é narrada não como um elemento místico, mas como uma realidade concreta que molda vidas. As mulheres negras da família de Cuandu repetem, geração após geração, uma trajetória marcada pela servidão a famílias brancas. Esse ciclo parece se perpetuar como as louças herdadas – frágeis, mas persistentes; belas, porém trincadas. A metáfora é poderosa: há uma herança simbólica que carrega tanto afeto quanto dor, e a narradora tenta, com palavras, romper com esse destino.

“Se qualquer uma de vocês pisar o dedão do pé, direito ou esquerdo, em qualquer cômodo do interior de qualquer das casas de família, nunca mais sairá...” – alerta a voz narrativa. É uma advertência, mas também um chamado à consciência. O romance inteiro é movido por essa tensão entre memória e ruptura.

Como psicanalista, Eliane Marques introduz ainda uma interessante camada de análise através do diálogo entre a narradora e sua analista, num embate que coloca em xeque as fronteiras do cuidado, da escuta e da neutralidade quando se trata da experiência negra. O livro toca com força questões como racismo estrutural, meritocracia, branquitude e a própria possibilidade de elaboração subjetiva para corpos historicamente violados.

Há um grito contido – e por vezes explícito – contra a pacificação forçada, contra a exigência de docilidade. A autora escreve contra a passividade: sua prosa é indócil, não busca conciliação, tampouco o conforto do leitor. É uma literatura que provoca, que exige escuta atenta e que reivindica o direito à complexidade das existências negras.

As imagens evocadas em Louças de Família têm o poder de cortar – como a borda de uma porcelana quebrada. Mas são também imagens que acolhem, que denunciam sem perder a poesia, que revelam o inominável com uma força inventiva rara. Eliane Marques entrega ao leitor uma obra profundamente necessária, que afirma: a literatura é também território de memória, justiça e reexistência.

 

 Boa leitura.

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