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Seu Ulisses e Dona Noemisa - Artesãos de Caraí/MG - Foto: Internet |
Prosseguindo o desenvolvimento dos temas da palestra
realizada no CAPS Itapeva, passo a tratar de alguns exemplos de “loucos”
artistas do barro do Jequitinhonha, a começar por Ulisses e Noemiza.
Num dia de julho de 1997 eu e Matheus Cotta, um
grande amigo, com quem então viajava, conhecemos Ulisses de Caraí e lhe demos
uma carona até o fundão do vale do Ribeirão Santo Antônio, onde mora, uns vinte
quilômetros subindo e descendo as cristas das altas montanhas das nascentes do
Médio Jequitinhonha. Matheus dirigia. Esse sertanejão de metro e noventa, cabeça enorme,
muito hirto e impositivo, quando nos viu, nos encarou de frente, pesado,
analisando, detrás de óculos grandes e fundos, e o conjunto, para os jovens
tenros de sertão, metia medo. Precipícios sim, precipícios não, pontes, mataburros,
suadeira, muita poeira, mas está muito melhor do que navegar pelas estradas de
janeiro, ensebadas de lama, com que não teríamos chegado e muito menos
regressado da grota medonha que o homem e sua família habitavam. Não gosta que ninguém seqüestre em aparelhos
eletrônicos o trovão de sua voz, muito menos sua imagem, já de cara, na cidade,
nos avisaram. Tudo bem, tudo bem, não tinha necessidade não, o importante era a
conversa, a aventura. Acontece que, ao longo da viagem, da boca do sujeito
jorrava uma filosofia da natureza de sabor tão peculiar (veneração de lajedo de
pedra, conjuro de espírito de plantas, conversa de águas de riacho, etc.) que,
assentado a sua frente, no banco do passageiro, não resisti e, cuidadosamente,
saquei da bolsa o gravador, pensando que, no fluxo egocentrado do discurso, o
velho caboclo não fosse perceber o “clic” do botão de “record”. Mas o gigante de óculos fundo de garrafa escutava
muito bem sim senhor e estava perfeitamente atento por detrás da língua solta,
pois mal a maquininha dos infernos deu o sinal, ele estacou, parou, abrupto, de
falar. Ai, ai, ai, tremi por dentro… O silêncio insistia… Para quebrar o gelo,
tolo, arrisquei uma perguntinha sem graça… Por trás de minhas costas, o vazio
sufocava… Por alguns segundos torturantes, esperei…E era o nada… Por fim, de
súbito, Ulisses decretou: “ô seu moçu, u negóc’ é u siguinti, ôce faz favô di
disligá iss’aí purque iss’aí é u passadu, iss’ aí é a morti!” E ponto. Da única outra vez que vi Ulisses, eu vim sozinho.
Porém, em certo ponto da estrada, o peso de meu automóvel fez ruir um velho
mataburro e ali ficamos, empacados. Tentei de tudo, sem solução. Então, resolvi
andar até a casa do artista, mesmo temendo que me reconhecesse como o idiota
traidor do microfone. Reconhecer, reconheceu. Mas como foi, afinal, que me
acolheu? Adivinhem… Ao contar o ocorrido, Ulisses e um genro seu, que
estava por ali, pois o caboclo é dono de suas horas, voltaram prontamente
comigo ao local do acidente e passaram a manhã lutando com a cabeça e com os braços para
tirar da vala meu trambolho de aço. Não se renderam enquanto não venceram o
desafio, uma batalha, sob um sol de fritar os miolos. E depois, de quebra, me
ofereceram um almoço de levantar defunto de que não me esquecerei enquanto vivo
for. Ulisses, ele mesmo, faleceu, faz poucos anos, e foi
parar nos céus de Dali e Miró, mas por décadas sua mente ardente e suas mãos
poderosas materializaram, em pesadas esculturas de argila, as imagens míticas
que povoavam sua fala, como vemos no exemplo da foto. Alguns quilômetros riacho abaixo, onde só era
possível chegar a pé, até pouco tempo atrás, por uma trilha saborosa, em meio à
mata, com direito ao luxo de sinfonias de passaredo e aromas insólitos,
profundos de surpresa, ainda vive a prima de Ulisses de quem hoje quero falar
com mais detalhes: Noemisa Batista Santos. Clima quente, pés criados no chão, roupa pouca de
chita pobre, essa coisinha mirrada deve estar na faixa dos quarenta quilos, o
porte de uma criança magra, não mais. Possui gestos elétricos, mas firmes, pois
é roceira, toda concretude e trabalho duro. E não é como Ulisses, não viaja nas idéias não.
Contudo seus olhos nunca batem com os nossos, estão sempre divagando, para
baixo, para cima, para os lados, e suas frases rápidas, que saem como flechas,
arremessadas no ar, a esmo, sem alvo, embora só tratem das estreitezas
cotidianas, são coisa de outro mundo, pois falam uma língua roseana que, meio
sem querer, acaba que se faz entender. observemos como o enigma de sua fala e a dança miúda
de seus gestos habituais pode ser capaz de produzir o realismo fantástico mais
puro. Noemisa “ficô pra tia”, como se diz. Por que? Por
imposição da mãe e das irmãs mais “sãs”? Porque talvez, na falta de uns
parafusos, jamais tenha sido desejada como mulher, pleiteada como esposa?
Difícil saber. O fato é que ficou para ela, a caçula, a tarefa de
uma vida de cuidar da irmã doente. Embora visite essas duas há mais de quinze
anos, jamais vi a cara da outra, a “louca” propriamente dita. É sempre mantida
presa, quando estranhos se aproximam, oculta no quartinho dela, especial, pois
tem porta e corrente com cadeado, no mais, inúteis onde não há o que cobiçar. As casas da roça por aqui não têm forro e os
construtores não parecem ver motivos para subir as paredes internas, de adobe,
até o nível do telhado, e enquanto converso, na sala ou na cozinha, ao lado,
com a dona da casa, voam lá de dentro da clausura, Foto: A casa feita em 2001
registrada em 2003como que vindos do limbo do purgatório, sentenças secas,
exigências ríspidas, palavrões e impropérios de toda estirpe, quando não, em
meio ao caudal raivoso, de repente, surge uma modinha sertã das boas, das de sabor
antigo, e muito bem cantada, tocante, carregada do espírito das velhas folias,
e olha que por aqui esses folguedos já não passam há muito, muito tempo. Esse canto sem face, de fogo louco, encantado mas
agressivo, que soa, ao mesmo tempo, mecânico e sentido, é o pano de fundo dos
encontros anuais que tenho com Noemisa, e produz no ambiente da casa uma
estranheza que poderia muito bem se achar num livro de Gabriel Garcia Marques
mas, juro, está na realidade mesma, nua e crua. Em janeiro de 2011 visitei Noemisa pela última vez,
poucos dias antes do Natal, e a encontrei, como na foto ao lado, mirando o
quintal da janela da cozinha, tão pequenina, enquanto lá fora o sol estourava.
Observem, o gnomo traz na cabeça uma boina vermelha de Papai Noel. Só Deus sabe
onde a conseguiu, em que outra dimensão. Só para Deus ele está trajando o
emblema, nessas solidões onde o calor impera mas o tempo está congelado. A cena
parece patética, mas é mais complexa, é espantosa: intrigante e perturbadora. Noemisa deveria, por tradição, ter herdado da
linhagem materna a arte da paneleira e fazer grandes potes, bules, buiões e
cuscuzeiras. Mas, sendo a mais nova, franzina e “abestaiada”, na crença da mãe
e irmãs, ficou restrita às tarefas práticas de catar lenha miúda, preparar
bolos de argila ou fazer a comida enquanto as outras subiam as “vasias”. O
produto valia uma ninharia mas era o que tinham para obter alguns trocados, um
escambo pouco vantajoso na feira de sábado ou nas mãos dos tropeiros acaso de passagem
pelos rincões esquecidos onde moravam. Como aconteceu com outras chamadas “bonequeiras do
Jequitinhonha”, a maioria filhas ou netas de paneleiras, a família permitia que
Noemisa, desde criança, colocasse no forno, entre os utensílios, uma ou outra
boneca para brincar ou vaquinhas e burricos para montar um presépio rústico,
improvisado. Os anos se passaram, as vasilhas de barro perderam a
concorrência para as de ferro e alumínio, cada vez mais baratas, leves e quase
indestrutíveis, a manufatura de potes e panelas foi à falência nestas e em
outras paragens, e a arte teria desaparecido com o antigo comércio não fosse a
loucura de Ulisses, Noemisa e outros que transformaram brincadeira de infância
em atividade séria e remunerada, voltada para um público distante, mas que aos
poucos passou a influenciar os sertões, na esteira da modernidade. Desde então, desde meados da década de 1970, e pouco
a pouco, os dois mudaram, com muita paciência, esforço e inventividade, o
destino do Ribeirão Santo Antônio. As próprias irmãs de Noemisa, Maria e Santa,
entre outras, da comunidade, passaram a copiar, sem o mesmo encanto, as
doidices que a menina impunha ao barro. De mera assistente de ofício ela se tornou, assim, o
centro de atenções inusitadas: compradores abastados, os mais ousados, que se
arriscam nessas lonjuras, brasileiros e alguns estrangeiros, lojistas,
jornalistas, pesquisadores. E foi assim que tornou-se o arrimo financeiro da
família, com o que vem ajudando a criar as sobrinhas e um filho que uma delas,
muito cedo, jogou no mundo. Apesar da “fama”, Noemisa jamais conseguiu se ver
livre dos mesquinhos atravessadores locais, que rondam à procura de uma
oportunidade de lucro fácil. E quando a clientela some, por meses a fio, e é
preciso remendar uma cerca ou dar capina na “rucinha” de milho e mandioca, pode
se ver obrigada a trocar uma de suas peças por um dia de trabalho de algum
rapagão da vizinhança que tem mais liberdade para ir negociá-la, da melhor
forma possível, no comércio das cidades mais próximas. Apesar das dificuldades do dia a dia, sobra tempo e
invenção suficiente para deixar a casa bem branquinha com uma espécie de cal
natural, a Tabatinga, e depois pintar sobre as paredes de dentro e de fora, com
óxido de ferro, corante vermelho com que também tinge suas peças de barro, os
magníficos desenhos de arranjos de vasos e flores. Em geral, Noemisa faz, com suas obras, a crônica da
vida sertaneja: o noivo e a noiva vestidos para o casório, a velha fiando
algodão, a mula que carrega de cada lado da cangalha um feixe pesado de lenha,
o caçador e seus cães que encurralaram uma onça na árvore e estão por abatê-la,
a cobra coral que engole um passarinho, o caboclo que está a ponto de enfiar a
faca no porco, algumas representadas nas fotos que selecionei. Mas em seu repertório existem certos seres, quase
identificáveis, como o suposto cão que ganha algo de criatura extraterrestre
por um pequeno exagero de feições ou pela pintura geométrica estilizada que
cobre seu corpo e existem certos arranjos de um simbolismo muito pessoal cujo
significado apenas a autora poderia nos explicar em sua língua de outras eras,
se estivesse disposta. Tudo considerado, penso com meus botões: o que teria
sido de Ulisses e Noemisa caso tivessem sido criados como a maioria de nós, que
compartilhamos esse texto, habitantes da grande cidade, alheios à rotina
laboral camponesa, de grande esforço físico, domínio ambiental, abrangência
cósmica e implicações simbólicas? O que lhes teria acontecido se tivessem sido
privados da diversidade e da intensidade dos contatos humanos, características
das comunidades rurais sertanejas? E se não tivessem nutrido suas almas dos
referenciais estéticos da herança católica embaralhada à mística cabocla, de
traços negros e índios subterrâneos? E se não tivessem sido a platéia atenta
dos contadores de “causo” ou se inspirado, na infância, nos poetas cantadores
da Folia do Divino que passou por suas casas? Como teriam vivido, então, com um
mínimo de dignidade? Como teriam encontrado os recursos para gerir e dinamizar
os poderes fantásticos de sua loucura? Num tempo em que a psicologia passa por um processo
de psiquiatrização de conseqüências catastróficas e sofre o ataque de uma
indústria farmacêutica de alta lucratividade que, por isso mesmo, pretende
impor às universidades mundo afora, sobretudo nos Estados Unidos, uma visão
biologista da psiquê humana, o que, no fundo, traduz o velho e cansado
moralismo bíblico que assevera que todo o mal reside no indivíduo, exemplos
como os que acabo de dar, espero, são suficientes para demonstrar enfaticamente
o quanto o ambiente natural, as tradições, o trabalho diversificado, o intenso
convívio comunitário e o exercício da arte aparentemente mais trivial podem
mudar por completo o destino pessoal de quem, por fatores genéticos tantas
vezes insondáveis, é candidato ao sofrimento psíquico. E demonstrar que essas
potências mesmas, libertas, podem se tornar o pilar material e estético de uma
comunidade. Por: Naldo
Moreira Este
texto compõe a série de posts elaborados por Naldo Moreira com base no
minicurso “Saúde Mental e Contexto Social: Alguns Exemplos do Jequitinhonha”,
ministrado no Caps Prof. Luís da Rocha Cerqueira (Caps Itapeva – SP), em 29 de
setembro de 2012. Extraído do
site: https://redeagrega.wordpress.com/2012/11/29/cronicas-do-jeqiutinhonha-ulisses-e-noemisa/ |
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