segunda-feira, 7 de março de 2022

MEMÓRIA CULTURAL - Tragédia prescrita

 

 

Imagem Internet

            Era uma criança de aproximadamente sete anos, muito apegada ao meu pai. Era sábado, sabia que era dia de feira, porque  ficava contando os dias para que meu pai trouxesse frutas, doces, sempre chegava com a cesta cheia de coisas gostosas. Excepcionalmente neste dia, fui avisada que não havia feira, por causa da eleição,  meu pai tinha saído muito cedo.

             Minha mãe vendo minha inquietude pela casa, resolveu visitar sua sobrinha que havia ganhado criança. Ela tinha costurado camisolas lindas e  levaria para presenteá-la.

            Saímos à tarde, havia um movimento pelas ruas por causa da votação. Não entendia direito aquilo, mas ouvia falar em casa, nas ruas e as pessoas comentavam o tempo todo.

            Na casa da minha prima, podia correr e brincar com outras crianças á vontade. Porém, já tardezinha, entrou correndo pela casa adentro uma mocinha, outra  prima, procurando por minha mãe. Estava ofegante e tão logo avistou minha mãe, já foi disparando:

__”Tia, chegou um tanto de  polícia. Falaram que são polícias das cidades vizinhas para dar reforço ao grupo daqui. Estão armados até os dentes! Falaram que  estão  querendo pegar seu marido e o irmão dele. E os dois  estão no boteco, bebendo ali”. Apontando para a direção.

            Neste mesmo instante, a mãe levantou-se e foi ter com o marido e o cunhado. E eu, também saí em disparada a protestar na  frente de mamãe, implorando e sapateando, típico de quem sabia fazer birra, para conseguir o que quer: __“Eu quero ir, também. Deixa eu ir. Eu quero ver meu pai” .

Não deu outra, minha mãe, pegou minha mãozinha e saiu ligeiro para o bar. Logo avistou o marido e o cunhado  e vários homens bebendo, pareciam comemorar algo. Ela tentou lhe avisar dos policiais na cidade, pediu que pelo menos guardasse as armas, não era seguro. Porém meu pai ficou irritado e até gritou dizendo: __” Ninguém manda em mim. Daqui não saio! “

            Mas o irmão do meu pai, lhe acalmou e propôs a saída juntos: eu, mãe, pai e meu tio. Tínhamos acabado de entrar num carro, tipo jipe, quando aproximou-se muitos policiais armados, rodearam o carro, dando voz de prisão aos dois. Cercados meu pai e seu irmão, desceram do carro, com as mãos levantadas, recriminando aquela ordem, sem motivo.

             Quando olhei em direção ao bar, havia um corre-corre de pessoas fugindo. Estávamos sozinhas, naquela situação, assisti as cenas mais cruéis! Aqueles policiais  batendo no meu pai e no meu tio. Para mim e minha mãe só restava pedir aos gritos e em prantos. Uma gritava: “Não bate no meu marido, pelo amor de Deus!” e eu, tremendo, pulava de desespero, querendo salvar meu pai, levando  ponta-pés, chutes e murros: __”Pai, ele é meu pai, larga ele, faz isso com ele , não”...

            Após aquela sessão de espancamento, minha mãe e eu conseguimos levar  meu pai para dentro do recinto daquele bar, colocando-o sentado, todo ensangüentado e machucado.

            Eu de um lado e minha mãe do outro, em prantos e apavoradas, quando levantei os olhos, avistei um  homem na porta do bar, com sua arma apontada que disparou num golpe certeiro, no peito de meu pai, já indefeso e ensangüentado. Ali mesmo escorrendo da cadeira, ajoelhando-se. A bala penetrada fez um buraquinho no peito dele, mas estraçalhou-lhe as costas.E minha  voz  ecoou: ___” Você matou meu pai!” Parecia que tinha arrancado as costas de papai, espirrando sangue por todo lado.

Daí, só me lembro de  ser colocada num carro, chorando e implorando que queria  meu pai. Ainda desesperada e assustada, gritava: __”Porque mataram ele? “E o homem dirigindo falava que não tinha matado. Até chegar à casa de  outra sobrinha da minha mãe.

            Soube por conversas às escondidas, que meu tio, foi levado arrastado para a cadeia. E nunca mais soube ao seu respeito, porque fomos embora da cidade, mas nunca consegui esquecer este episódio.

            Em situações assim, nos dias atuais, horrores noticiados contra um país da Europa. Quanta criança atormentada, crescerá sobre estes efeitos nocivos?

             No Vale do Jequitinhonha também já se viu a tormenta provocada pela força bruta da política a “ferro e fogo”. Toda atrocidade fica prescrita um dia, mas os instantes das perdas e violências, jamais serão apagadas das mentes  que os deixarão atordoadas. Aquelas criaturas que sobreviverem, talvez consiga ao menos contar em súbita lucidez e sanidade, como esta menina, que hoje descreve uma tragédia prescrita.  

Contribuição de Frediano Olímpio Martins

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2 comentários:

  1. Forte e real, retrata várias situações similares que ocorrem pelos becos, botecos e dentro de casa. Sórdida memória de muitas infâncias que o adulto que a vivenciou carregará para sempre. È preciso acolhida e escuta para amenizar o fardo.

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