quinta-feira, 3 de março de 2022

DIÁRIO DE LEITURA - Não Acredito em Fantasmas

 

Mascarados, Carnaval Itinga - Foto: Jô Pinto


Diz até que não tem superstição. Mas mente. Nem só nisso, mente sempre. Veja bem, levanta com o esquerdo. Ora, não é tanto faz, não é qualquer pé, só sempre o esquerdo. Vê-se que isso é uma afronta de alguma espécie. E quem se atreve com o que não acredita? Era o carnaval de seus 11 anos. Os pais e o irmão estavam na cada da tia, que ficava logo do lado. Sabia bem onde a mãe guardava as moedas, das quais recebia, em cada noite, duas para festejar.

Teria duas mais.

Na hora de ir para a praça, o bônus. Recebeu duas moedas. Mas tão logo a falta foi sentida, tornou-se a primeira suspeita.

  Fui eu.

  Por quê?

  Não encontrei vocês.

  E por que recebeu outras duas.

  Esqueci.

Ela mente sempre.

A mãe brigou, mas não reouve o furto. Então tudo bem. Saiu um sermão mais encolhida, mas duas moedas mais rica. Duas moedas mais altiva.

No meio do caminho curto entre sua casa e a praça, avistou saindo do escuro, um grupo de mascarados. Malditas tradições. O coração palpitou. Para a história, perdera o medo com a madrinha ainda aos 3 anos. Claro, não se lembrava, mas todos tinham orgulho de contar.

E ela mentia sempre.

Mentiu de novo, porque fingiu, até para si mesma, que esqueceu algo em casa. Levou a mão à testa, deu meia volta e pôs-se a andar, mais rápido que de costume.

Queria acreditar que não havia nada de errado, mas algo a angustiava sensivelmente: por mais que tentasse pensar em qualquer outra coisa, ouvia um barulho que gelava sua barriga. O barulho aumentava e começou a andar mais rápido que qualquer outra vez. O barulho aumentava e, contrariando ao que insistia em se convencer, nem era um barulho qualquer. Havia um mascarado, cujo gemido parecia cada vez mais próximo.

Quis olhar para trás, como fazia sempre que tinha medo, para garantir que não era nada. Mas alguma coisa incomodava que era. O caminho se alongou, ou o tempo que esmoreceu, porque quanto mais caminhava e mais rápido, que não era um seu costume, mais longe parecia de casa.

Ele gemia alto como um vento em noite vazia e assombrada. Barulho de gente é que não era. E, dali para o futuro todo, não se esqueceria nunca mais. Ainda que mentisse.

Tinha o passo pesado, que batia com som de bota preta. Não eram passos rápidos, o que lhe deu mais medo, porque, em paradoxo, o gemido estava cada vez mais próximo. Quase gritou quando a sombra lhe alcançou. Grande, negra, lenta. Sem olhar para trás soube que ele tinha uma grande capa escura que ele movimentava como se sem pressa.

Talvez sua ansiedade é que desacelerasse os movimentos. Talvez.

 

Talvez a lentidão fosse mais uma crueldade. Do mascarado. De drama. Talvez.

Talvez fosse uma espécie de criatura sobrenatural, rápida sendo lenta. Talvez.

Ele gemeu mais alto, e ela desejou que fosse por estar mais perto. A alternativa outra era que fosse intencional. E a intenção seria crueldade. E a crueldade seria para ela, a essa altura, desespero.

Por tocar a maçaneta, gelada, teve que assumir que tremia. Voltou a respirar quando sentiu que a porta estava aberta. Gritou mãe, fingindo que ela estava lá, um pouco para assustá-lo, um pouco para acalmar-se. Entrou num relance, mas ainda pôde sentir a capa grande, negra e lenta tocando sua pele. Estremeceu.

Trancou a porta sem perceber.

Quando percebeu, alguns segundos depois, sentiu-se de alguma forma segura. Deu dois passos lentos para dentro da sala. Possivelmente, não havia ninguém em casa. Ouvia os passos e os gritos de outros mascarados descendo a rua. Arriscou mais uns passos.

Quando achou que poderia voltar a viver, ouviu mais uma vez o gemido vazio e cruel lhe assombrando.

Correu os olhos pela sala, para decidir para onde fugiria. Ele não estava lá dentro. Mas estava lá. Olhou para janela e viu, a máscara de palhaço, com cabelo alaranjado, sorriso irônico, e nariz vermelho. Não era tão feia. Pior mesmo foi olhar para seus olhos, que não existiam. Eram apenas dois vazios, totalmente negros e lentos. Não podia se mexer. Nem ele. Estava também preso. Ela não sabia se no receio ou na alegria de ser descoberto.

Ficou ali perdida na escuridão do medo, até que ele, grande, ergueu lentamente sua capa, escondendo o vazio que era, e caminhando lentamente, alcançou com facilidade o restante do bando de mascarados.

Queria ir até a janela, ver que ele ria de seu medo com os outros mascarados, ver que ele corria de cachorros, ver que ele existia de alguma forma, que não no vazio e na escuridão.

Não foi.

Quando a mãe chegou, confirmou para ela e inventou para si que havia esquecido o batom, que antes nunca levou, mas que então queria levar.

Saiu como se aquele momento não tivesse existido. Como se tivesse sonhado. Brincou, brincou, mas não sem olhar volta e meia ao seu redor, apenas para se certificar de que nenhum mascarado grande se atreveria a se aproximar. Olhava sempre para os olhos.

Voltou no horário marcado. Não por costume, que por regra nunca chegava no horário marcado, que era outra sua afronta, e mentia sempre, um novo motivo, ou um motivo esquecido, ou umas poucas vezes um motivo real. quando o motivo era real sentia medo, do castigo. Só mais um detalhe dela. Dessa vez não queria castigo. Fez quase todo o trajeto

Cresceu fingindo que crescia como se aquele momento não tivesse existido. Como se tivesse sonhado. Mas manteve a mania de olhar nos olhos. De tudo.

Era o carnaval de seus 30 anos. Os pais e o irmão estavam na casa da tia, que era logo ao lado. Pegou o dinheiro que ganhava e saiu. Brincou, brincou, mas não sem olhar volta e meia ao seu redor, apenas para se certificar de que nenhum mascarado grande se atrevia. Buscava sempre os olhos.

  Parece que você tem medo de mascarado.

  Não por superstições.

  Então pelo quê?

  São muito ousados.

  E por que não se afasta ao invés de encará-los.

  Por coragem – ela mentia sempre. Deu de ombros.

  Mas, certa vez conheci um mascarado sem olhos.

   Não é você quem diz que não acredita em fantasmas? Como pode existir um mascarado sem olho?

  Não acredito mesmo. Mas que esse existe, existe.


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