sábado, 2 de outubro de 2021

EscreVIVENDO – Escrevivências a partir do CABELO

 

Imagem do Grupo sou negro

“Como, mulher, tu não querias andar assim, se tua essência é esta?” (Thaisa Martins)

Cabelo. Parece algo simples e, geralmente, é reduzido apenas ao gosto pessoal de quem o tem.

O gosto, se sentir bem como aquilo que está em cima da sua cabeça, é fundamental, óbvio. Mas acho importante conversar para além da aparência, do mero penteado, textura ou cor de um cabelo.

Pensando o meu lugar, como mulher negra, venho aqui comentar que cabelo, para nós, negras, não se trata apenas de uma questão de estilo ou modismo. É um símbolo e pode ser compreendido como um instrumento de resistência.

Em 2021, completou-se oito anos em que eu, finalmente, deixei o meu cabelo se expressar naturalmente. Dos 6 aos 23 anos passei pelos tradicionais rituais de chapinha e alisamento químico. Sim. Foram mais de 15 anos nesta rotina! Permitir com que meu cabelo pudesse, enfim, ser ele, foi a abertura para algo muito maior e profundo, que envolve o processo de reconhecimento como mulher negra. E afirmo que isso é um processo, porque de fato é. Somos um país que viveu quase quatro séculos de escravização do povo negro, e os diversos mitos de mestiçagens construídos aqui, retardou o nosso reconhecimento como negros e negras, reduzindo-nos a nomenclaturas, que nos impunha à aproximação ao branqueamento, como “moreno” e “marrom bombom”.

Por isso, não é de hoje que corpos negros incomodam a sociedade ou são hiper sexualizados, tratados como objetos e, que, portanto, as pessoas se sentem na permissão de tocar, sem a permissão, ou de dar opinião sobre, sem sequer serem questionadas. Portanto, afirmo que o cabelo crespo é resistência, porque incomoda a sociedade e a afronta, a enfrenta.

No início deste ano, em um reality show, o nosso cabelo, por ser volumoso e crespo, foi comparado como a peruca que compunha a fantasia de um “homem das cavernas”. O nosso cabelo pode ter uma aparência tida como ressecada, para a sociedade, porque a oleosidade natural do couro cabeludo não chega facilmente até as pontas, como no cabelo liso, por exemplo. Afinal, há muitas curvas e cachinhos envolvidos neste trajeto, o que impede uma hidratação contínua do próprio couro cabeludo. Então, a meu ver, olhando para a referida peruca exposta no reality, eu não nego a semelhança. Agora, usar isso como recreação é que deve ser altamente repudiado, porque, de fato, é racismo, pois oprimiu a nossa identidade ao fazer chacota de um símbolo tão importante que a compõe, como o cabelo.

Na ocasião do referido reality, como era de se esperar, o tratamento dado a esta questão foi meramente individual. Daí, a importância de refletirmos sobre o racismo como algo estrutural, pois de tanto estar presente nos diversos espaços da sociedade, chega até a aparecer como se fosse entretenimento.

Para terminar, quero dizer que sou muito grata a escritora Djamila Ribeiro por, no ensaio autobiográfico expresso em seu livro “Quem tem medo do feminismo negro?”, ter me mostrado que o que eu passei, durante a infância, na escola, não era brincadeirinha, ou mesmo, bullying. O que eu passei foi racismo. Ser segredada de espaços por ter cabelo crespo não é simplesmente briguinha de coleguinhas, e continuar a ser alvo de chacotas quando o alisava é algo que só quem viveu sabe do que se trata. Lembro direitinho do dia em que, no ônibus escolar, um colega de aula puxou o prendedor do meu cabelo e cantou a música da propaganda de esponja de aço “Assolan”. Eu fiquei muito envergonhada e desesperada. Hoje, quero dizer para atitudes como esta que podem soltar o meu prendedor, que eu balanço os meus cachos e peço que saia do meu caminho, porque eu quero passar com o meu black. Afinal, como diz a música cantada na voz de Gal Costa: “Quem disse que cabelo não sente? (...) Cabelo vem lá de dentro (...)”.

 

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18 comentários:

  1. Perfeita reflexão, o nosso cabelo é muito mais que um cabelo, é um símbolo de muita resistência. Passar pela transição capilar nos faz entender não só como lidar com a nossa naturalidade, mas também como rememorar a nossa ancestralidade. O cabelo natural da brilho aos nossos rostos e felicidade a nossa alma. Parabéns Thaisa pelo texto, me senti muito bem representada. Viva às mulheres negras!! ❤️🥰

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    1. Gratidão, Raquel, querida! Você me inspira! Viva às mulheres pretas. Vivaaaa às mulheres do Vale.

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  2. Adorei amiga, que bom ver você falando sobre isso com essa propriedade de quem viveu e com certeza esse relato vai ajudar muita.gente a se aceitar também 😘🌹

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  3. Gratidão, minha amiga. Que bom ler isso. Muito obrigada por todo o incentivo.

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  4. Parabéns, Thaísa! Aprendo muito com você e sua história! Que nossos cabelos sejam respeitados. E que cada vez mais as meninas negras se identifiquem com ele ao natural!

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  5. Que linda, profunda e intensa reflexão mana .
    Sua ousadia muito me orgulha.
    Parabéns pelo seu processo de autoconhecimento e fortalecimento de identidade.
    Gratidão por esse testemunho de força e resistência!!!
    Seguimos na luta enfrentando o racismo diário.
    Muito orgulho de você!!!!
    Continue brilhando com seu cabelo...com sua coroa.....
    Te amo!!!

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    1. Oh gracinha. Me emocionei. Gratidao, irmã que tanto amo. ❤

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  6. Parabéns, Thaisa! Seu texto é cirúrgico. É imprescindível tratarmos desse tema cotidianamente. Ainda temos inúmeros preconceitos "arcaicos" se assim possamos dizer que aos poucos vão sendo "modernizados". Não podemos permitir que isso aconteça. Textos como o seu funcionam como vacinas. Quanto mais gente falando sobre, melhor! Seguimos na luta. Ass: Poeta Incensurável.

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  7. Obrigada pela contribuição, Poeta ❤. Sigamos 💋

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  8. Thaisa, minha querida! Texto-relato maravilhoso, sensível e necessário. Que sua força e seu cabelo possam ocupar os espaços por aí, abrindo caminho para muitas outras que também carregam a identidade racial na cabeça, mesmo que ainda não tenham se dado conta do processo, afinal quando falamos do cabelo, não é só cabelo. Abraços.

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    1. Nilane, querida, você me inspira tanto. Muita gratidão por este retorno. Abração.

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  9. Cabelo é identidade e remete ancestralidade! Que texto incrível! Força, sensibilidade, cultura e resistência! O caminho é longo, mas a vontade de lutar é maior!

    Parabéns ❤️

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  10. Thaisaaa, que texto, minha querida! Adorei! Curti a fluidez.

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