terça-feira, 28 de outubro de 2025

CONTOS E CRÔNICAS DO JEQUI - Racismo e Violência em Itinga no século XIX

Imagem gerada por IA


A história da Escrava Feliciana, que se tornou uma santa popular para o Povo de Itinga, é uma história conhecida, mas existe outra história de uma jovem negra que também sofreu com a escravidão em Itinga e que poucas pessoas falam sobre sua história. Venho pesquisando a anos tentando entender os motivos pelo qual essa história ficou tão oculta mesmo na memória popular.

 

No início do século XIX, o Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, era uma região marcada pela exploração agrícola e pela presença de grandes fazendas sustentadas pelo trabalho escravo. A história da jovem negra mutilada na Fazenda Jenipapo, em Itinga, insere-se nesse contexto de extrema violência e dominação. Segundo a narrativa oral, a jovem foi vítima de um ato de ciúmes e crueldade extrema por parte da esposa de um coronel, após um comentário sexualizado feito por outro homem branco sobre os seios da menina.

“diz a história oral, que dois coronéis, estavam na sala e a patroa mandou servir o café, quando a menina se retirou da sala, o coronel visitante disse: quanto você quer pela negrinha? ela tem seios lindos, diga seu preço, o coronel respondeu  - vendo não, essa é minha, de estimação. Porem sua esposa ouviu e pediu que levassem a menina para senzala, lá ela arrancou os seios da menina e mandou que outra escravizada levasse e servisse para os dois em uma bandeja”

Esse episódio revela como mulheres negras escravizadas eram vistas como propriedade sexual e doméstica, sem qualquer direito sobre seus corpos ou destinos. A mutilação dos seios, símbolo de feminilidade, maternidade e identidade, foi uma forma de punição exemplar, usada para reafirmar o poder da senhora branca sobre a escravizada e sobre o próprio marido, num gesto de posse e vingança.

A violência sofrida por essa jovem não foi um caso isolado. Mulheres negras escravizadas eram frequentemente vítimas de estupros, castigos físicos e mutilações, tanto por senhores quanto por senhoras. A escravidão no Brasil não apenas explorava a força de trabalho, mas também o corpo e a sexualidade das mulheres negras, que eram sistematicamente desumanizadas.

A atitude da senhora da fazenda, ao arrancar os seios da menina e servidos aos coronéis, é um gesto de sadismo que ultrapassa a punição física: é uma tentativa de apagar a humanidade da vítima, transformando-a em objeto de escárnio e repulsa. Esse ato também revela a cumplicidade das mulheres brancas da elite escravocrata com o sistema de opressão racial e patriarcal.

Embora não se saiba o destino da jovem mutilada, sua história sobreviveu na memória popular como um símbolo da brutalidade do regime escravocrata. Narrativas como essa são fundamentais para compreender as raízes do racismo e da desigualdade de gênero no Brasil contemporâneo. Elas nos lembram que a violência contra corpos negros e femininos não é um fenômeno recente, mas parte de uma longa história de opressão.

Resgatar essas memórias é um ato de resistência. É dar voz às vítimas silenciadas pela história oficial e reconhecer a dor que moldou a trajetória de milhões de brasileiros. É também um chamado à justiça histórica, à reparação e à construção de uma sociedade que enfrente com coragem os fantasmas do seu passado.


Por  Jô Pinto - Historiador e Pesquisador das historias do Povo Negro e Quilombola do Vale do Jequitinhonha. 



 

 

 

 

 


 

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