terça-feira, 26 de julho de 2022

O ASSUNTO É? - Memórias

 

Os grilos estrilam lá longe. Estou sentada há algum tempo no batente da porta. Nos últimos meses tenho preguiça até de levantar, passo horas sentada. Fico vendo minha vida como num filme, algumas partes esmaecidas pelo tempo, fragmentos dos quais não me lembrava mais, vejo cenas em que estive, mas as enxergo como se fosse mera espectadora. Relembro minha chegada aqui na fazenda, vinha para lecionar para os filhos dos camponeses, ainda não havia escola, as aulas aconteciam na sala da casa de um fazendeiro local. Primeiro dia de aula, uma a uma as crianças chegavam, ressabiadas, as roupas de adulto mal ajustadas aos corpos franzinos, as unhas encardidas do trabalho com a terra. Eu as acompanhei até a idade adulta, eduquei seus filhos e netos. Logo ao chegar iniciei meus trabalhos com uma turma de adultos que frequentavam o curso noturno. Eram trabalhadores do campo, a maioria acima dos trinta anos, que, no entanto, não sabiam ler ou escrever, não sabiam fazer o “ó com o fundo da garrafa”, como eles mesmos diziam. Naquele tempo, usava-se segurar as mãos dos alunos para conduzi-los no processo da escrita. Assim conheci Antônio, um rapaz moreno, todos o chamavam de Preto. Sempre que ele chegava, meu coração disparava, trocávamos olhares durante as aulas, até que ele pediu minha mão. Acabamos nos casando em 1968. A partir de então, passei a trabalhar no campo e na sala de aula, trabalhava bastante, plantando e colhendo roça, fazendo comida para os camaradas, lavando tachos e mais tachos. Também era eu quem fazia a merenda das crianças, carregava os caldeirões de merenda com a ajuda das meninas do lugar, andávamos léguas. Era muito difícil. Trabalhando no campo e em sala de aula, acabei por fundar a escola do lugar, eduquei várias gerações. Eu, além de professora, fazia o papel de mãe de muitas moças. Aconselhava-as sobre assuntos femininos, como as regras, gravidez e outras coisas. As acolhia da fúria dos pais, como o senhor Joaquim que espancava as filhas com chicote de açoitar os animais, que chegava bêbado e entrava em casa atirando com sua espingarda contra a mulher e as filhas. Lembro-me de que muitas vezes as meninas da casa dormiam no mato, fugindo da fúria do pai. Era assim. Por longo tempo exerci a função de professora. Após me aposentar continuei a trabalhar no campo, auxiliando Antônio na lavoura. Já fazem seis anos que ele partiu e perdi a graça com tudo. Todas as noites vou ao seu túmulo que fica no alto aqui do nosso terreno, levo uma garrafa de café e fico horas conversando com ele, contando causos, dando risada, às vezes choro e pergunto o porquê de sua partida. Quando amanhece, desço aqui para casa para dar comida aos bichos e continuar essa vida até o dia em que Deus quiser. 

*Texto em homenagem à tia Maria José, “Tia Zezé” professora durante muitos anos na Comunidade Rural  Fazenda Catarina, município de Bocaiúva.


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