Comunidade Quilombola Córrego do Rocha - Foto: Jô Pinto |
Estão preparados para o café?
— Que café?
— Ora. Vocês vão para o Vale.
— E lá produz café?
— Lá é interior de Minas. Não se pode
negar uma tomada de café no interior de Minas.
— Que bobagem. É só explicar o
motivo.
— Pode ser... eu prefiro não
arriscar.
Estavam animosos para o trabalho. As
referências de quem já havia visitado o Vale eram as melhores. Boa comida,
sossego, simplicidade, paisagens bucólicas. E a hospitalidade... a incontestável
hospitalidade do povo do Jequitinhonha. Foram horas de estrada da capital ao
sertão mineiro. E mais a estrada de terra das comunidades rurais.
— Boa tarde. Estamos fazendo uma
pesquisa...
— É do governo?
— Não. É para nossa tese de
mestrado.
— Cês aceita um café?
Os pesquisadores se entreolharam.
— Claro.
Quanta delicadeza naquela casa. Os
estudantes ficaram surpresos com a limpeza e cuidado com que cada coisa era
posta na pequena residência. E a hospitalidade era ainda mais aconchegante que
o cheiro do café de fogão de lenha. Saíram da casa com as informações
necessárias, uma carga de aprendizado, boas risadas e o coração aquecido. E
deixaram para trás, naquelas pessoas esperançadas, a alegria de fazer parte do
mundo.
— Que bacana esses minino vim conhecê
a gente, né?
Próxima casa.
— Boa tarde. Nós somos estudantes de
mestrado. Estamos fazendo uma pesquisa.
— É do governo?
— Não.
— Então, entra, que até acabei de coá
um café.
Com o passar das horas o mormaço do
dia e o Sol escaldante da estrada já refletiam algum cansaço nos pesquisadores.
Estavam voltando por uma outra estradinha de pouca gente quando avistaram uma
casinha mais embaixo, à direita, numa estrada vicinal.
— Boa tarde. Estamos fazendo uma
pesquisa. Não tem nada com o governo. É para nosso trabalho na Universidade.
— Entra. Vô pegá um café.
— Precisa não, Dona...
— Ana.
— Ana é o nome de minha avó.
— Da vó de Jesus também.
— Verdade. Mas como eu tava dizendo.
A senhora não precisa se preocupar...
— Num esquenta não que já tá coado.
— Sabe o que é, Dona Ana? Visitamos
outras tantas casas, hoje. Tomamos café agorinha mesmo. Dessa vez, a gente não
vai aceitar, não.
Dona Ana encarou os visitantes.
— Tá bom. Deixa eu falá, não vai dar
pra atender ocês agora, por mode eu tá fazendo biscoito.
— É bem rapidinho.
— É que eu num já terminei. Inda tem
um cado pra assar, sabe?
— Sei. Há outras casas aqui por
perto?
— Pegando o próximo galho pra
direita, coisa de 300 metros, tem um vilarejo.
— Muitas casas?
— Lá pras 15, viu. Mas é perigoso cês
num encontrá quem responde ocês, por mode que hoje é dia do terço de Santa
Luzia. Tá todo mundo empenhado.
Respeitando também o cansaço, os
colegas preferiram deixar pro outro dia.
— Muito estranho esses rapaz... –
Dona Ana murmurou e entrou para casa.
No pequeno vilarejo, o pessoal se
reuniu para rezar o terço. No dia seguinte, os forasteiros voltavam animados,
apesar de já terem experimentado a quentura do Sol que lhes esperava.
— Bom dia. Estamos fazendo uma
pesquisa...
— Dia. Deixa eu te falá, a gente tá
ocupado aqui cuidando dos animais.
— Não é nada do governo.
— Eu sei. É que tá apertado mesmo.
— Tudo bem.
Casa Seguinte.
— Eu tenho que arrancá umas raiz de
mandioca...
Casa seguinte.
— Meu marido num tá. É ele que sabe
responder essas coisas...
Casa seguinte.
— Bom dia.
— Bom dia. Desculpa, viu. Mas meu
filho tá meio perrengado.
— Como?
— Tá difruçado.
— Perdão, não entendi.
— Perrengado, duicido, gripado.
— Ah! Sim. Mas são só umas perguntas.
— Num dá, seu moço.
— Tudo bem.
Os rapazes estranharam as negativas.
Os vizinhos resmungavam.
— Onde já se viu? Bem que dona Ana,
falou, esses povo é esquisito. Querendo que eu respondo os trem com o menino
duicido.
— Mas é só difruço. O menino tá até
malinando no terreiro.
— Eu, hein, inda mais que ês nem
entende nada. Falei um lote de vez que o menino tava doente. Esse povo estranha
nós. Dona Ana falou que nem café ês aceita.
— E Dona Ana conhece ês de onde?
— Ês passo lá ontem.
— Que será que ês qué?
— Eu num sei não. Capaz que qué
inricá ni nossas costa. Ô dó. Aqui ês num toma uma nica. Vai ficá aí zanzando,
que todo mundo já tomou tenência.
— Pois, ó ês voltando aí...
Se o Sol de outrora não foi capaz de
abater a disposição dos pesquisadores, a falta de receptividade do vilarejo,
mesmo na frescura da manhã, exauria suas forças. E ainda tinha a fome. Com
tanto biscoito comido no dia anterior, há de se compreender que não tenham se
preocupado com guarnições para a empreitada.
— O pessoal hoje tá bem ocupado,
aqui.
— Ô, Seu Doutô, capaz que tá acochado
o serviço mesmo. Amanhã é dia de feira.
— Não sou doutor. Não precisa de
cerimônia. Será que enquanto sua esposa cuida do menino, o Senhor não poderia
ajudar a gente?
— Oia, tá meio difícil...
— Então, será que o Senhor pode dar a
gente ao menos um café?
O casal se entreolhou.
— Café?
— É. Um cafezinho preto, só.
— Tá coado, Tina?
— Cabei de coá.
— Eita, o cheiro tá lá na cancela.
— Então, entra aí, os menino.
— Muito obrigado!
— Oia, eu posso até vê o que sei
respondê aí desses trem, se num fô difícil, sabe como é, eu só fiz até a quarta
série...
Herena
Agenda
16/07 19h – Tomando Conhecimento – Thaisa Martins entrevista DIANALUZ
Canal dos Poetas e Escritores do Vale
no YouTube
Canal do Projeto Rádio Zói D’Água no YouTube
Por
Que riqueza de detalhes, muito sensível seu texto, consegui ver todas as cenas.Parabéns!
ResponderExcluirMuito agradecida! Deixa seu nome para mentalizar o abraço daqui, rsrsrsrs
ExcluirMuito bom! Parabéns Herena.
ResponderExcluirObrigada!!!
ExcluirMuito bom. Cria belíssimas mentais, olfativas e gustativas. Parabéns!
ResponderExcluirO café aguça todos os nossos sentidos!
ExcluirHá muito eu não lia um texto assim, exuberante de beleza e retratando com fidelidade e riqueza de detalhes a nossa gente, exceto em Grande Sertão, Veredas. Parabéns, Herena Barcelos
ResponderExcluirÉ uma honra receber um comentário desse de um escritor tão importante para a literatura do Vale!
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