quinta-feira, 15 de julho de 2021

DIÁRIO DE LEITURA - São regras de educação elementar que a gente pratica naturalmente...


Comunidade Quilombola Córrego do Rocha - Foto: Jô Pinto


Estão preparados para o café?

— Que café?

— Ora. Vocês vão para o Vale.

— E lá produz café?

— Lá é interior de Minas. Não se pode negar uma tomada de café no interior de Minas.

— Que bobagem. É só explicar o motivo.

— Pode ser... eu prefiro não arriscar.

 

Estavam animosos para o trabalho. As referências de quem já havia visitado o Vale eram as melhores. Boa comida, sossego, simplicidade, paisagens bucólicas. E a hospitalidade... a incontestável hospitalidade do povo do Jequitinhonha. Foram horas de estrada da capital ao sertão mineiro. E mais a estrada de terra das comunidades rurais.

— Boa tarde. Estamos fazendo uma pesquisa...

— É do governo?

— Não.  É para nossa tese de mestrado.

— Cês aceita um café?

Os pesquisadores se entreolharam.

— Claro.

Quanta delicadeza naquela casa. Os estudantes ficaram surpresos com a limpeza e cuidado com que cada coisa era posta na pequena residência. E a hospitalidade era ainda mais aconchegante que o cheiro do café de fogão de lenha. Saíram da casa com as informações necessárias, uma carga de aprendizado, boas risadas e o coração aquecido. E deixaram para trás, naquelas pessoas esperançadas, a alegria de fazer parte do mundo.

— Que bacana esses minino vim conhecê a gente, né?

Próxima casa.

— Boa tarde. Nós somos estudantes de mestrado. Estamos fazendo uma pesquisa.

— É do governo?

— Não.

— Então, entra, que até acabei de coá um café.

Com o passar das horas o mormaço do dia e o Sol escaldante da estrada já refletiam algum cansaço nos pesquisadores. Estavam voltando por uma outra estradinha de pouca gente quando avistaram uma casinha mais embaixo, à direita, numa estrada vicinal.

— Boa tarde. Estamos fazendo uma pesquisa. Não tem nada com o governo. É para nosso trabalho na Universidade.

— Entra. Vô pegá um café.

— Precisa não, Dona...

— Ana.

— Ana é o nome de minha avó.

— Da vó de Jesus também.

— Verdade. Mas como eu tava dizendo. A senhora não precisa se preocupar...

— Num esquenta não que já tá coado.

— Sabe o que é, Dona Ana? Visitamos outras tantas casas, hoje. Tomamos café agorinha mesmo. Dessa vez, a gente não vai aceitar, não.

Dona Ana encarou os visitantes.

— Tá bom. Deixa eu falá, não vai dar pra atender ocês agora, por mode eu tá fazendo biscoito. 

— É bem rapidinho.

— É que eu num já terminei. Inda tem um cado pra assar, sabe?

— Sei. Há outras casas aqui por perto?

— Pegando o próximo galho pra direita, coisa de 300 metros, tem um vilarejo.

— Muitas casas?

— Lá pras 15, viu. Mas é perigoso cês num encontrá quem responde ocês, por mode que hoje é dia do terço de Santa Luzia. Tá todo mundo empenhado.

Respeitando também o cansaço, os colegas preferiram deixar pro outro dia. 

— Muito estranho esses rapaz... – Dona Ana murmurou e entrou para casa.

 

No pequeno vilarejo, o pessoal se reuniu para rezar o terço. No dia seguinte, os forasteiros voltavam animados, apesar de já terem experimentado a quentura do Sol que lhes esperava.

— Bom dia. Estamos fazendo uma pesquisa...

— Dia. Deixa eu te falá, a gente tá ocupado aqui cuidando dos animais.

— Não é nada do governo.

— Eu sei. É que tá apertado mesmo.

— Tudo bem.

Casa Seguinte.

— Eu tenho que arrancá umas raiz de mandioca...

Casa seguinte.

— Meu marido num tá. É ele que sabe responder essas coisas...

Casa seguinte.

— Bom dia.

— Bom dia. Desculpa, viu. Mas meu filho tá meio perrengado.

— Como?

— Tá difruçado.

— Perdão, não entendi.

— Perrengado, duicido, gripado.

— Ah! Sim. Mas são só umas perguntas.

— Num dá, seu moço.

— Tudo bem.

Os rapazes estranharam as negativas. Os vizinhos resmungavam.

 

— Onde já se viu? Bem que dona Ana, falou, esses povo é esquisito. Querendo que eu respondo os trem com o menino duicido.

— Mas é só difruço. O menino tá até malinando no terreiro.

— Eu, hein, inda mais que ês nem entende nada. Falei um lote de vez que o menino tava doente. Esse povo estranha nós. Dona Ana falou que nem café ês aceita.

— E Dona Ana conhece ês de onde?

— Ês passo lá ontem.

— Que será que ês qué?

— Eu num sei não. Capaz que qué inricá ni nossas costa. Ô dó. Aqui ês num toma uma nica. Vai ficá aí zanzando, que todo mundo já tomou tenência.

— Pois, ó ês voltando aí...

Se o Sol de outrora não foi capaz de abater a disposição dos pesquisadores, a falta de receptividade do vilarejo, mesmo na frescura da manhã, exauria suas forças. E ainda tinha a fome. Com tanto biscoito comido no dia anterior, há de se compreender que não tenham se preocupado com guarnições para a empreitada.

— O pessoal hoje tá bem ocupado, aqui.

— Ô, Seu Doutô, capaz que tá acochado o serviço mesmo. Amanhã é dia de feira.

— Não sou doutor. Não precisa de cerimônia. Será que enquanto sua esposa cuida do menino, o Senhor não poderia ajudar a gente?

— Oia, tá meio difícil...

— Então, será que o Senhor pode dar a gente ao menos um café? 

O casal se entreolhou.

— Café?

— É. Um cafezinho preto, só.

— Tá coado, Tina?

— Cabei de coá.

— Eita, o cheiro tá lá na cancela.

— Então, entra aí, os menino.

— Muito obrigado!

— Oia, eu posso até vê o que sei respondê aí desses trem, se num fô difícil, sabe como é, eu só fiz até a quarta série...

 

Herena

 

 

Agenda

16/07 19h – Tomando Conhecimento – Thaisa Martins entrevista DIANALUZ

Canal dos Poetas e Escritores do Vale no YouTube

 

 13/07 – Prosa Literária

Canal do Projeto Rádio Zói D’Água no YouTube

Por



 


8 comentários:

  1. Que riqueza de detalhes, muito sensível seu texto, consegui ver todas as cenas.Parabéns!

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    1. Muito agradecida! Deixa seu nome para mentalizar o abraço daqui, rsrsrsrs

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  2. Muito bom. Cria belíssimas mentais, olfativas e gustativas. Parabéns!

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  3. Há muito eu não lia um texto assim, exuberante de beleza e retratando com fidelidade e riqueza de detalhes a nossa gente, exceto em Grande Sertão, Veredas. Parabéns, Herena Barcelos

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    1. É uma honra receber um comentário desse de um escritor tão importante para a literatura do Vale!

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