quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

DIÁRIO DE LEITURA - Jornal Geraes: a voz que reinventou o Vale do Jequitinhonha



A dica de leitura da semana traz a história e a memória crítica do território por meio de um dos projetos mais significativos da comunicação popular do Vale do Jequitinhonha: o Jornal Geraes. Criado em 1978, ainda sob os últimos anos da ditadura militar, o periódico nasceu do desejo de jovens estudantes universitários, muitos deles filhos do Vale do Jequitinhonha, de romper com estigmas como “Vale da Miséria”, “bolsão de pobreza” ou “Vale da fome”. Sua proposta era clara: falar do Vale para o Vale, registrando não apenas desigualdades, mas também a força a cultura e as resistências do povo desta região.

Impresso em Belo Horizonte e distribuído inicialmente de forma gratuita, o jornal estruturou-se como projeto independente, sustentado por assinaturas, apoios e ações culturais, como feiras de artesanato e concursos de poesia. O conselho editorial  composto por Aurélio Silby, Carlos Albérico Figueiredo, George Abner e Tadeu Martins, articulava uma rede de correspondentes em cidades como Araçuaí, Almenara, Capelinha, Itaobim e Pedra Azul. Muitos colaboradores atuavam anonimamente, dada a ligação do jornal com setores da imprensa alternativa (como Movimento, Em Tempo e Pasquim) e com movimentos de esquerda da época (PCdoB, Convergência Socialista, MEP).

Mais que um veículo de informação, o Geraes consolidou-se como instrumento cultural, político e comunitário, nas suas páginas reuniam poemas, crônicas, denúncias sociais e fotografias que revelavam o cotidiano, as tensões sociais e a criatividade popular. Essa prática o aproxima do que hoje definimos como jornalismo comunitário: uma comunicação construída desde o território, refletindo suas vozes e modos de vida. A equipe percorria o Vale ouvindo moradores, artesãos, agricultores, jovens e lideranças comunitárias, documentando tanto carências estruturais quanto manifestações culturais que compõem a identidade regional.

Em 1979, essa articulação cultural contribuiu para a realização do I Encontro de Compositores do Vale, em Itaobim, evento que se tornaria o embrião do FESTIVALE, hoje um dos maiores festivais de cultura popular de Minas Gerais. O jornal não apenas retratou a cultura do Vale: ele a ajudou a construir, fortalecendo artistas, promovendo encontros culturais e ampliando a visibilidade da produção regional.

Um dos entendimentos fundamentais que emergiram do grupo foi a percepção de que a cultura popular poderia ser motor de desenvolvimento socioeconômico. Essa ideia, defendida especialmente por Tadeu Martins, poeta, professor e figura central do Geraes, sustentava que o Vale carregava em sua tradição “[...] a ferramenta capaz de alavancar o desenvolvimento econômico e simbólico da região”.

Dessa reflexão surge um dos feitos mais marcantes do jornal: a idealização, em 1980, do primeiro FESTIVALE. Inicialmente concebido como Festival da Canção Popular do Vale do Jequitinhonha, o evento rapidamente ampliou-se para outras expressões culturais, tornando-se o Festival da Cultura Popular do Vale do Jequitinhonha.

Tadeu Martins descreve a concepção do festival por meio das “quatro correntes do desenvolvimento”, que deveriam orientar a transformação do Vale a partir de dentro:

“Quando criei a ideia do Festivale, eu me baseei em quatro elos: conhecer, gostar, defender e divulgar.”

O primeiro passo seria fazer com que o próprio povo do Vale reconhecesse sua riqueza:

“Era preciso que o Vale se conhecesse, sua história, sua geografia, seus mitos, suas lendas, sua cultura, seus produtos.”

A partir desse conhecimento, surgiriam gosto, defesa e, finalmente, divulgação:

“Quando você conhece, passa a gostar. Se gosta, passa a defender. Se defende, passa a divulgar, com a razão e com o coração. E aí você consegue desenvolver.”

Assim, o FESTIVALE não nasceu como iniciativa isolada, mas como desdobramento direto da prática cultural e política do Geraes. O festival fortaleceu artistas, artesãos e compositores, ampliando o alcance da arte do Vale e projetando seus criadores para além das fronteiras regionais.

Ao mesmo tempo, o jornal construiu imagens poéticas e afirmativas do Vale, contribuindo para uma identidade regional compartilhada. Embora essas representações não tenham mudado a estrutura social, elas ajudaram a enfrentar estigmas como “Vale da fome” e abriram espaço para grupos culturais que passaram a ganhar visibilidade como representantes da chamada “cultura de raiz”.

Visualmente, o jornal também operou simbolicamente. Sua capa com o título “Geraes” em forma de madeira e a figura de um trabalhador rural de chapéu, fortalecia vínculos afetivos e territoriais. Como analisa Bezerra (2007), essas representações articulam práticas materiais e imaginárias na construção de territorialidades e pertencimentos.

O Geraes circulou até 1985, deixando pouco mais de vinte edições, hoje raras. Em 2011, ex-colaboradores organizaram o volume “Geraes: A Realidade do Jequitinhonha”, reunindo parte desse acervo histórico. Atualmente, o material pode ser consultado em bibliotecas universitárias e acervos culturais, constituindo fonte valiosa para pesquisas sobre educação, cultura, comunicação, memória e movimentos sociais.

Ler o Geraes hoje é reencontrar vozes que insistiram em existir, criar e resistir. É compreender como jovens do interior produziram jornalismo crítico e criativo na transição democrática, articulando denúncia social, poesia, memória coletiva e afirmação territorial. Mais que documento do passado, o jornal permanece como símbolo de mobilização, identidade e pertencimento, uma janela histórico-cultural para quem vive, ama ou pesquisa o Vale do Jequitinhonha.


Referências 


AFONSO, Ana Maria. A imprensa alternativa brasileira. São Paulo: Loyola, 1982.

ALBANO, Eny. Palavras em suor maior: duas antologias poéticas do Baixo Jequitinhonha nos anos 80. Montes Claros: Unimontes, 2021.

BEZERRA, Maria de Fátima. Território e Representação: o Vale do Jequitinhonha. Belo Horizonte: UFMG, 2007.

BRAGA, José Luiz. A Imprensa Alternativa no Brasil. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991.

RAMALHO, Maria Lúcia. Educação e cultura no Vale do Jequitinhonha: memórias e representações. Belo Horizonte: PUC Minas, 2010.

RAMALHO, Juliana Pereira. Depoimento de Tadeu Martins. Acervo oral, 2005.

SILVA, Tadeu. Viva o Vale do Jequitinhonha! Belo Horizonte: Metro, 2011.

UNIMONTES. Acervo Cultural do Vale do Jequitinhonha. Montes Claros, 2021.

https://www.revistacontemporaneos.com.br/n4/pdf/geraes.pdf


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