A dica de leitura da semana traz a
história e a memória crítica do território por meio de um dos projetos mais
significativos da comunicação popular do Vale do Jequitinhonha: o Jornal
Geraes. Criado em
1978, ainda sob os últimos anos da ditadura militar, o periódico nasceu do
desejo de jovens estudantes universitários, muitos deles filhos do Vale do
Jequitinhonha, de romper com estigmas como “Vale da Miséria”, “bolsão de
pobreza” ou “Vale da fome”. Sua proposta era clara: falar
do Vale para o Vale, registrando não apenas
desigualdades, mas também a força a cultura e as resistências do povo desta
região.
Impresso em Belo Horizonte e distribuído
inicialmente de forma gratuita, o jornal estruturou-se como projeto
independente, sustentado por assinaturas, apoios e ações culturais, como feiras
de artesanato e concursos de poesia. O conselho editorial composto por Aurélio Silby, Carlos Albérico
Figueiredo, George Abner e Tadeu Martins, articulava uma rede de
correspondentes em cidades como Araçuaí, Almenara, Capelinha, Itaobim e Pedra
Azul. Muitos colaboradores atuavam anonimamente, dada a ligação do jornal com
setores da imprensa alternativa (como Movimento, Em
Tempo e Pasquim) e com movimentos de
esquerda da época (PCdoB, Convergência Socialista, MEP).
Mais que um veículo de informação, o Geraes
consolidou-se como instrumento cultural, político e
comunitário, nas suas páginas reuniam poemas, crônicas,
denúncias sociais e fotografias que revelavam o cotidiano, as tensões sociais e
a criatividade popular. Essa prática o aproxima do que hoje definimos como
jornalismo comunitário: uma comunicação construída desde o
território, refletindo suas vozes e modos de vida. A equipe percorria o Vale
ouvindo moradores, artesãos, agricultores, jovens e lideranças comunitárias,
documentando tanto carências estruturais quanto manifestações culturais que
compõem a identidade regional.
Em 1979, essa articulação cultural
contribuiu para a realização do I Encontro de
Compositores do Vale, em Itaobim, evento que se tornaria
o embrião do FESTIVALE, hoje um
dos maiores festivais de cultura popular de Minas Gerais. O jornal não apenas
retratou a cultura do Vale: ele a ajudou a construir,
fortalecendo artistas, promovendo encontros culturais e ampliando a
visibilidade da produção regional.
Um dos entendimentos fundamentais que
emergiram do grupo foi a percepção de que a cultura popular
poderia ser motor de desenvolvimento socioeconômico.
Essa ideia, defendida especialmente por Tadeu Martins, poeta, professor e
figura central do Geraes, sustentava que o Vale
carregava em sua tradição “[...] a ferramenta capaz de alavancar o
desenvolvimento econômico e simbólico da região”.
Dessa reflexão surge um dos feitos mais
marcantes do jornal: a idealização, em 1980, do primeiro FESTIVALE.
Inicialmente concebido como Festival da Canção Popular do Vale do
Jequitinhonha, o evento rapidamente ampliou-se para outras
expressões culturais, tornando-se o Festival da Cultura
Popular do Vale do Jequitinhonha.
Tadeu Martins descreve a concepção do
festival por meio das “quatro correntes do desenvolvimento”,
que deveriam orientar a transformação do Vale a partir de dentro:
“Quando criei a ideia
do Festivale, eu me baseei em quatro elos: conhecer, gostar, defender e
divulgar.”
O primeiro passo seria fazer com que o
próprio povo do Vale reconhecesse sua riqueza:
“Era preciso que o Vale
se conhecesse, sua história, sua geografia, seus mitos, suas lendas, sua
cultura, seus produtos.”
A partir desse conhecimento, surgiriam
gosto, defesa e, finalmente, divulgação:
“Quando você conhece,
passa a gostar. Se gosta, passa a defender. Se defende, passa a divulgar, com a
razão e com o coração. E aí você consegue desenvolver.”
Assim, o FESTIVALE não nasceu como
iniciativa isolada, mas como desdobramento direto da prática cultural
e política do Geraes. O festival
fortaleceu artistas, artesãos e compositores, ampliando o alcance da arte do
Vale e projetando seus criadores para além das fronteiras regionais.
Ao mesmo tempo, o jornal construiu
imagens poéticas e afirmativas do Vale, contribuindo para uma identidade
regional compartilhada. Embora essas representações não tenham
mudado a estrutura social, elas ajudaram a enfrentar estigmas como “Vale da
fome” e abriram espaço para grupos culturais que passaram a ganhar visibilidade
como representantes da chamada “cultura de raiz”.
Visualmente, o jornal também operou
simbolicamente. Sua capa com o título “Geraes” em forma de madeira e a figura
de um trabalhador rural de chapéu, fortalecia vínculos afetivos e territoriais.
Como analisa Bezerra (2007), essas representações articulam práticas materiais
e imaginárias na construção de territorialidades e pertencimentos.
O Geraes
circulou até 1985, deixando pouco mais de vinte edições, hoje raras. Em 2011,
ex-colaboradores organizaram o volume “Geraes: A Realidade do
Jequitinhonha”, reunindo parte desse acervo histórico.
Atualmente, o material pode ser consultado em bibliotecas universitárias e
acervos culturais, constituindo fonte valiosa para pesquisas sobre educação,
cultura, comunicação, memória e movimentos sociais.
Ler o Geraes hoje
é reencontrar vozes que insistiram em existir, criar e resistir. É compreender
como jovens do interior produziram jornalismo crítico e criativo na transição
democrática, articulando denúncia social, poesia, memória coletiva e afirmação
territorial. Mais que documento do passado, o jornal permanece como símbolo
de mobilização, identidade e pertencimento, uma janela
histórico-cultural para quem vive, ama ou pesquisa o Vale do Jequitinhonha.
Referências
AFONSO, Ana Maria. A imprensa alternativa
brasileira. São Paulo: Loyola, 1982.
ALBANO, Eny. Palavras em suor maior: duas antologias poéticas do Baixo Jequitinhonha nos anos 80. Montes Claros: Unimontes, 2021.
BEZERRA, Maria de Fátima. Território e Representação: o Vale do Jequitinhonha. Belo Horizonte: UFMG, 2007.
BRAGA, José Luiz. A Imprensa Alternativa no Brasil. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991.
RAMALHO, Maria Lúcia. Educação e cultura no Vale do Jequitinhonha: memórias e representações. Belo Horizonte: PUC Minas, 2010.
RAMALHO, Juliana Pereira. Depoimento de Tadeu Martins. Acervo oral, 2005.
SILVA, Tadeu. Viva o Vale do Jequitinhonha! Belo Horizonte: Metro, 2011.
UNIMONTES. Acervo Cultural do Vale do Jequitinhonha. Montes Claros, 2021.
https://www.revistacontemporaneos.com.br/n4/pdf/geraes.pdf
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