terça-feira, 11 de novembro de 2025

CONTOS E CRÔNICAS DO JEQUI - O Crime da Macieira

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Como se viu, seu Custódio era versado em leis e, visto que a cidade nem sempre contava com advogados, funcionava como rábula, em suas horas vagas. Nessas ocasiões, o dr. Rufino, nosso meritíssimo e o Promotor, dr. Lacerda se viam embaraçados. Dr. Rufino já havia transposto a barreira dos sessenta. Estava cansado, de aspecto doentio. De baixa estatura, meio gordo e careca, arrastando-se com dificuldade.

Viúvo, deu de contrair novas núpcias e isso veio contribuir para o agravamento de suas condições. Dona Hortênsia era bem mais jovem e o Juiz não poderia mesmo dar conta do recado. E, como sempre acontece, a mulher precisava de ser satisfeita, de um modo ou de outro. E o velho foi colecionando chifres, segundo se dizia. Como magistrado, era homem íntegro e para aquele fim de mundo, um luminar da ciência do Direito.

Já o dr. Promotor apresentava como melhor credencial as maravilhas de dona Vanda. Garota da capital, moderna e sirigaita, destoava das jovens de sua idade. Vestia-se com ousadia, cruzava as pernas descobrindo as calcinhas e, pior do que tudo, banhava-se no rio em companhia do marido, a quem não regateava carinhos, à vista de todos. "Pouca vergonha danada", murmuravam as más línguas. Parece que o diabo da mulher está sempre pedindo mais! Suspeitava-se. Falava-se à boca pequena. Mas não havia provas. Chegava-se a admitir que na cidade não tinha ainda mijado fora do penico.

Era o que se dizia. Mas na capital, não se tinham dúvidas: "entrava na vara. Ora, se entrava". Era lá que ia esfriar o rabo. Se o dr. Lacerda nutria alguma suspeita, não deixava que transparecesse. E a vida ia correndo. Do Juiz, não se duvidava. Dona Hortênsia se deitava em qualquer pedaço de jornal. E dona Vanda..... Ah! Quem me dera!.

Foi quando Mané Gaudêncio provocou a dupla tragédia. Tratava de sua roça na Macieira e raramente vinha à cidade O dia quase inteiro no mato e dona Sinhana, em casa. Mané Gaudêncio chegou, aí pelas quatro, e ainda de machado na mão, abriu a porta do quarto. De pronto, раrece não ter acreditado no que viu. Firmou as vistas. Não era ilusão. Bidinho e dona Sinhana, nus como nasceram, rolavam na cama. Não pensou duas vezes. De um golpe, decepou a cabeça do macho. Dona Sinhana uivou de pavor, implorando:

- Pelo amor de Deus, Mané!...

O marido puxou-a e arreganhou-lhe as pernas:

- É pau que ocê qué, num é? Então, toma!

               O cabo do machado enterrou-se em seu corpo, do útero à garganta, estraçalhando-a.

Mané Gaudêncio entregou-se à polícia. A família do morto reuniu os cobres e mandou vir o dr. Expedito para auxiliar a acusação. Seu Custódio concordou com a defesa.

No dia do julgamento, a Coletoria não funcionou e seu titular, desde as nove da manhã, palestrava com Antônio de Aristides, lubrificando sua garganta para os debates.

O dr. Lacerda tomou a palavra. Estávamos diante de um dos mais bárbaros crimes de que se tinha notícia. Gaudêncio não era um homem. Era uma feral. Um animal irracional! Nossa civilização não poderia aceitar que tal facínora escapasse à condenação! Teríamos que escolher entre sermos considerados bárbaros ou civilizados! A pena máxima era muito pouco para Manoel Gaudêncio! Seu auxiliar seguiu a mesma linha e descreveu o crime brutal com riqueza de detalhes.

O dr. Rufino passou a palavra à defesa. Seu Custódio limpou os óculos.

- Senhor Juiz, senhores jurados! Afirma-se, de um modo genérico, que todo advogado é mentiroso. Nesse caso, porém, os acusadores disseram a verdade. Foi exatamente como eles afirmaram que Manoel Gaudencio cometeu o duplo assassinato. E ainda mais, que não tinha sido aquela a primeira vez que Bidinho e dona Sinhana tinham se encontrado. Isso pode não ser verdade, mas muito pouco importa. Meritíssimo Senhor Juiz, dr. Promotor de Justiça, senhor auxiliar da acusação. Existe um ditado que reza ser o homem traído é o primeiro que sente e o último que sabe. Muitos dos que aqui estão presentes não o ignoram. Ninguém tem pena do corno. Todos o achincalham. Por isso, aqueles que sabem, fingem que ignoram. Para eles, é bem mais cômodo. Para os que não nasceram para a chacota, a descoberta da traição conjugal sempre termina em tragédia. Também aqui há muitos que sabem disso. Mas a acusação vem de nos colocar entre a civilização e a barbárie, em dependência da decisão dos senhores jurados.

O dr. Juiz e os advogados da acusação são homens civilizados. Também o são os ingleses. E na Inglaterra, ninguém estranha quando a esposa abandona o lar e a ele retorna à primeira rusga com o amante. O marido a recebe de braços abertos, até que ela parta novamente. Mas os ingleses são altamente civilizados. Talvez por isso, os soldados da guarda real, símbolos do império, usem o imponente boné de pele de urso, alto e marcial, à feição de casa de cupim. Também no Brasil, nos grandes centros, no âmbito da alta sociedade, os homens são civilizados. E todos se entendem. Mas vejam agora. Chega o homem cansado do trabalho. Procura a esposa. Contemplem, senhores jurados a horrível cena! Sobre a cama, a esposa nua, cavalgada por um amante igualmente nu! Qual teria sido a reação de um homem normal? Qual teria sido a reação dos senhores, senhores jurados? O homem civilizado, nas palavras do dr. Promotor, retirar-se-ia, pé ante pé, para não ser visto e aguardaria a partida do amante de sua mulher. E haveria de fingir ignorar sua vergonha pelo resto de seus dias. Mas outros o saberiam! O homem comum, ao contrário, diante de tal cena, se rebelaria e lavaria sua honra com sangue! Mais tarde, seria acoimado de bárbaro e de fera! Mas não viveria em desonra pelo resto de seus dias. Seu Custódio limpou a garganta. A sorte de Manoel Gaudêncio está em suas mãos. Dentro em pouco, os senhores apresentarão seus votos. Ficaremos sabendo quantos dos senhores são homens civilizados. Conheço-os a todos, um por um. Mas existem segredos que todos nós desconhecemos e que poderão se revelar agora!

Manoel Gaudêncio foi absolvido por unanimidade!


Texto extraído do livro " O estranho mundo do Dr. Boaventura, crônicas do Jequitinhonha" de Otto Paulino


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