quarta-feira, 21 de setembro de 2022

CARTAS A UMA NEGRA - o diálogo epistolar em que as almas se cruzam.

 



“Pois é, Carolina, as misérias dos pobres do mundo inteiro se parecem como irmãs. Todos leem você por curiosidade, já eu jamais a lerei; tudo o que você escreveu, eu conheço, e tanto é assim que as outras pessoas, por mais indiferentes que sejam, ficam impressionadas com as suas palavras. [...]” Ega, p. 05.


O livro “Cartas a uma negra – narrativa antilhana” foi escrito por Françoise Ega, em forma de cartas, de uma maneira peculiar, podemos dizer, epistolar, Ega escreveu para Carolina Maria de Jesus cartas, cartas essas que nunca foram lidas pela autora brasileira. Natural da ilha da Martinica, nas Antilhas, nasceu em 1920, falecendo em 1977 precocemente aos 55 anos. Durante a sua vida, Françoise morou em vários países africanos juntamente com o marido, e mais tarde imigra para Marselha - França em busca de dias melhores, e se vê fadada ao trabalho de empregada doméstica, assim como muitas jovens mulheres antilhanas.

Como a autora diz no começo do livro, ela conheceu a história de Carolina através das publicações da revista Paris Match, como Ega dizia “atualmente, ela fala muito dos negros” p. 06.  E ao longo do livro Françoise se direciona claramente à sua “amiga Carolina”, pois como ela mesma diz, ela se identifica com as pessoas mais marginalizadas, sobretudo as pessoas negras que precisam correr atrás do pão de cada dia, “Na favela, você nunca foi capaz de pensar em nada além do pão de cada dia. Penso que é isso que me aproxima de você, Carolina Maria de Jesus.” p. 07.

Tive a honra de mediar essa grande obra durante um encontro online do clube Leia Mulheres Araçuaí e a história de Ega, assim como a de Carolina, são histórias marcantes, histórias que carregam o peso do racismo, escancarado, tratamentos desumanos, machismo, xenofobia etc. Permitam-me deixar alguns pontos interessantes sobre essa excepcional obra:

O primeiro ponto é sobre a relação social de Mam’Ega, (nome abreviado da autora) que tinha com o marido, ao mesmo tempo que ela tinha um “status social” naquela época em ter um marido que auxiliasse, ele nunca acreditou em seu potencial como escritora, e sempre inferiorizava a sua escrita.

O segundo ponto, que para mim foi o mais crucial e importante seria: “como seria se Carolina tivesse a oportunidade de ler as cartas de Mam’Ega direcionadas a ela”. Ega diz que se sente descansada ao conversar com Carolina, quando nos expressamos com quem nos entende é outra dimensão, é como se estivéssemos falando para nós mesmas, sem amarras, preceitos e muita afinidade. “Nós não falamos o mesmo idioma, mas o do nosso coração é o mesmo, e faz bem se encontrar em algum lugar, naquele lugar onde nossas almas se cruzam.”. p. 21

O terceiro ponto é como o racismo nos coloca em uma condição de inferiorização e muitas das vezes numa posição animalesca de ser tratada como um animal, assim como Mam’Ega foi tratada pelo esposo de sua “patroa”. Como comentários assim nos coloca como pessoas irracionais, Carolina vivia na favela do Canindé entre os porcos e Ega também era tratada nessa condição. O racismo só muda de endereço, mas continua o mesmo e atacando as mesmas pessoas.

O quarto e último ponto, (o restante deixo para a curiosidade do leitor), é sobre o mito da “negra raivosa”, Françoise tinha que se irritar e falar alto, pois quando ela se vê em situações em que o óbvio deve permanecer, era taxada como louca. Demonstrando que quando os agressores querem nos diminuir em determinadas situações, simplesmente não dão a devida importância para o fato, tal caso causa uma série de revoltas a nós que nos sentimos injustiçadas.

Esse livro é um grande documento histórico, uma escrita de denúncia, Françoise e Carolina viviam em lugares diferentes, mas existia um diálogo de almas, elas se reconheciam dentro desse contexto social de exclusão, seja no Brasil ou na França. As duas eram mulheres, negras, pobres, trabalhadoras, e sobretudo, sonhadoras, pois mesmo vivendo em situações que as impediam de escrever e datar acontecimentos tão importantes, elas acreditavam no poder que a escrita tem. Agradeço a Mam’Ega e Carolina, por hoje poder ter a oportunidade de conhecerem as suas obras e anunciá-las nesses canais informativos.

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