terça-feira, 31 de agosto de 2021

O ASSUNTO É? - Cinema e negritude




Sou apaixonada pela arte cinematográfica, porém nem sempre foi assim. Boa parte de minha vida assisti a filmes como quem consome algo para se divertir, sem capacidade de apreciar a sensibilidade artística das construções fílmicas. Foi um amigo, professor de inglês, quem me ensinou a apreciar as obras fílmicas como quem lê um livro, entender quem é a pessoa que dirigiu, a composição do elenco, quem preparou a trilha sonora, perceber como as pessoas que dirigem filmes assinam suas obras e poder estabelecer similaridades entre as obras dirigidas por uma mesma pessoa. Essa iniciação no universo da apreciação fílmica foi revolucionária para mim. É uma linguagem muito presente em nossa sociedade, responsável por atuar na produção do imaginário, do simbólico. Ao produzir e fazer circular sentidos socialmente construídos em várias sociedades, tem ainda o poder de ampliar nossa visão para detalhes antes imperceptíveis, criar mundos e influir neste em que vivemos. Podemos conhecer um pouco de cada sociedade a partir de suas produções fílmicas. Atualmente, é possível ter acesso ao cinema africano, indiano, sul-coreano e muitos outros. Mas gostaria de falar hoje sobre dois longas-metragens brasileiros: Café com canela, de 2017, dirigido por Glenda Nicácio e Ary Rosa, e M8- Quando a morte socorre a vida, de 2019, dirigido por Jefferson De. Escolhi esses dois filmes por serem dirigidos por pessoas negras, pelo elenco predominantemente negro e/ou por tratar com sensibilidade e sem estereótipos acerca de temas caros ao povo negro. Café com Canela é ambientado nas cidades de Cachoeira e São Félix, no Recôncavo Baiano, e tem como protagonistas Margarida (Valdinéia Soriano) e Violeta (Aline Brune). Apesar de tratar de temas “universais”, como a morte, a relação com a perda e a amizade, o longa-metragem traz várias referências à cultura negra e africana, como a orixá Oxum, sua relação com a água e a maternidade. O centro da trama é a relação de amizade e empatia estabelecida entre uma professora e sua ex-aluna. A fotografia é belíssima, assim como a trilha sonora. Traz no elenco Babu Santana interpretando Ivan, um homem homossexual de meia-idade que também vivencia uma perda. O segundo filme, M-8 Quando a morte socorre a vida, aborda o racismo estrutural que (des)organiza a sociedade brasileira. Trata das angústias do jovem Maurício (interpretado por Juan Paiva) que acabou de ingressar na universidade, no curso de Medicina, e se vê como o único negro da turma, visto que os demais negros na universidade, além dos vigias, são os corpos utilizados como objeto de estudo nas aulas de anatomia. Não vou discorrer mais sobre a trama, para não atrapalhar a fruição de quem for assistir. Porém, nessa breve sinopse já dá para imaginar quantas discussões importantes podem ser feitas a partir da obra. O drama traz outros/as grandes artistas, como Zezé Motta, Mariana Nunes, Ailton Graça, Lázaro Ramos, João Acaiabe, Raphael Logam e Rocco Pitanga. Por muito tempo, as negras e negros foram apresentadas/os de forma estereotipada e preconceituosa no cinema e na televisão, porém, graças à luta incansável de intelectuais e militantes, como Abdias do Nascimento, Maria do Nascimento e outros do Teatro experimental do Negro (TEN), tais construções têm sido rechaçadas, demonstrando o vigor e a beleza das produções artísticas do nosso povo. Essas duas obras podem ser trabalhadas em sala de aula favorecendo o reconhecimento e fortalecimento da identidade de jovens negros/as, visto que, conforme Lélia Gonzales: “ A gente não nasce negro, a gente torna-se negro. É uma conquista dura, cruel e que se desenvolve pela vida da gente afora. É uma identidade que você vai construindo. Essa identidade negra não é uma coisa pronta, acabada.”

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2 comentários:

  1. Gostei demais do texto e das indicações dos filmes. Fiquei empolgada para assistir. Esta linguagem fílmica sem estereótipos é fundamental. Precisamos conhecer. Quantas e quantas vezes vemos nossos corpos sendo impostos a espaços tido como de desprezo?

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  2. Obrigada pelo retorno Thaisa,os filmes mencionados no texto são muito potentes.abraço

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