Solitária, de Eliana Alves Cruz, constitui-se
como uma narrativa que tira o leitor do lugar. Espacialmente, pois nos
transporta ao edifício Golden Plate, mais especificamente ao apartamento da
cobertura que ocupa todo um andar, onde vive a família de D. Lúcia: “aquela
residência parecia mesmo: um cenário” (p. 16). Simbolicamente, porque nos
possibilita compreender o espaço e ações narrativas que nele ocorrem, por meio
de uma perspectiva inovadora: via personificação dos ambientes domésticos.
Ainda, deixa muito claro para nós que a ficção espelha, e se espelha, na
realidade, e vice-versa.
Os capítulos do
romance receberam títulos que fazem referência direta à organização, disposição
e funcionalidade dos espaços: piscina, escritório, cozinha, quarto de despejo,
criada-muda. Este é o “cenário” de um crime mencionado já no começo do livro,
mas que nós, leitores, iremos desvendar enquanto caminhamos pelas
páginas-espaços.
Na primeira parte, a
história é narrada pela perspectiva de Mabel, que ainda criança adentrou com a
mãe, pela porta de serviço, o apartamento, e com ela dividiu a cozinha e o
quarto de empregada; também lá, fez amigos, amores, e viveu dissabores,
principalmente, em se tratando da relação com Camila, a filha dos patrões. É no
espaço da cozinha que Mabel e sua mãe comemoram uma grande conquista: a
aprovação da jovem no vestibular, o que transformam ambas, principalmente
porque Mabel reflete: “Eu e mamãe continuávamos ali, na gaiola dourada do
edifício Golden Plate. Éramos pássaros dentro de um viveiro luxuoso, mas uma
jaula não deixa de ser vilã da liberdade só porque é pintada de dourado?” (p.
69). Aquele é também um cenário de aprisionamento.
Na segunda parte do
romance, a história é narrada pela perspectiva de Eunice, por meio da qual se
constrói uma linha temporal que ilustra a trajetória do trabalho doméstico no
Brasil: da senzala ao quarto de despejo. A mãe de Mabel, no auge do seu/nosso
processo de reflexão, afirma, relembrando a trajetória das mulheres de sua
família: “além dos espaços apertados que ocupávamos, o silêncio era um
companheiro. Era preciso estar presente sem estar. Uma boa serviçal é
silenciosa, e a criança que é filha dessa mulher também deve ser” (p. 97).
Todavia, alimentada pela partilha da leitura pela filha, pondera: “era como
dizia num dos livros de uma escritora chamada Conceição Evaristo, que Mabel
passou a devorar e de vez em quando lia pra mim: ‘em boca fechada não entra
mosquito, mas não cabem risos e sorrisos’” (p. 97). Aquele é também um cenário
de tolhimento.
Já a última parte –
Solitárias – os lugares nos quais Eunice e Mabel viveram, bem como aqueles
pelos quais passam a transitar são personificados, e pela voz narrativa deles
outro olhar sobre as páginas-espaços é possível: Quarto de empregada, Quarto de
porteiro, Quarto de hospital, Quarto de descanso, sinalizando uma
transformação, uma nova vida, cujo crime ocorrido no Golden Plate parece ter
sido um dos desencadeadores. Surge um novo espaço de vida, conquistado por duas
mulheres – mãe e filha – que juntas passam a reconhecer e a revelar a
mentalidade elitista, traduzida em muitos discursos e ações que, aparentemente
em prol da igualdade, visam a permanência de cada um em seu lugar e que
traduzem muito bem os nossos tempos: a empregada que a patroa afirma ser
“considerada da família”, a demonização das cotas raciais, o julgamento sobre
as decisões sobre o corpo da mulher negra, as bandeiras do Brasil estendidas
nas janelas, enfim. É lindo ler que na última parte Eunice e Mabel estão
livres! Ambas estão livres também do peso de “serem gratas” e, em virtude
disso, serem levadas a proteger quem seria a responsável pelo crime: a morte de
uma criança, no pátio luxuoso do Golden Plate.
Referência
https://www.revistabula.com/57068-os-10-melhores-romances-brasileiros-de-2022/
CRUZ, Eliana Alves. Solitária.
São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
* Elisangela A. Lopes Fialho é mestre em
Teoria da Literatura pela UFMG, Doutora em Literaturas de Língua Portuguesa
pela PUC-Minas, professora do IFSULDEMINAS - Campus Pouso Alegre e pesquisadora
da literatura afro-brasileira e da prosa de Machado de Assis. É coautora
de Literatura afro-brasileira: 100 autores do século XVIII ao XXI
(2. ed., 2019), Literatura afro-brasileira: abordagens na sala de
aula (2. ed., 2019) e de Literatura e afrodescendência no Brasil:
antologia crítica (2a Reimpr., 2021).
Link
para texto completo
http://www.letras.ufmg.br/literafro/arquivos/autores/Eliana_Alves_Cruz_resenha_Elis_Solitria1.pdf
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