quinta-feira, 23 de março de 2023

DIÁRIO DE LEITURA - Dica de leitura , livro " Solitária "


 

 Recentemente lançado pela Companhia das Letras, o conto da escritora Eliana Alves Cruz “Solitária”, conta a história de Mabel e Eunice, duas mulheres negras, mãe e filha, que moram no trabalho, um condomínio de luxo desses encontrados em qualquer grande cidade brasileira. Eunice, a mãe, é testemunha-chave de um crime chocante ocorrido na casa dos patrões. Mabel, a filha, constrói o caminho que leva não apenas à elucidação deste crime, mas a uma mudança radical na vida das pessoas que cercam as protagonistas. Em prosa ágil, intensa e assertiva, Eliana Alves Cruz constrói uma miríade de histórias que revolve o imaginário do trabalho doméstico no Brasil — ainda tão vinculado à época escravocrata — e o relaciona a questões contemporâneas urgentes como a pandemia, o debate sobre ações afirmativas e a luta por direitos reprodutivos.

Solitária, de Eliana Alves Cruz, constitui-se como uma narrativa que tira o leitor do lugar. Espacialmente, pois nos transporta ao edifício Golden Plate, mais especificamente ao apartamento da cobertura que ocupa todo um andar, onde vive a família de D. Lúcia: “aquela residência parecia mesmo: um cenário” (p. 16). Simbolicamente, porque nos possibilita compreender o espaço e ações narrativas que nele ocorrem, por meio de uma perspectiva inovadora: via personificação dos ambientes domésticos. Ainda, deixa muito claro para nós que a ficção espelha, e se espelha, na realidade, e vice-versa.

Os capítulos do romance receberam títulos que fazem referência direta à organização, disposição e funcionalidade dos espaços: piscina, escritório, cozinha, quarto de despejo, criada-muda. Este é o “cenário” de um crime mencionado já no começo do livro, mas que nós, leitores, iremos desvendar enquanto caminhamos pelas páginas-espaços.

Na primeira parte, a história é narrada pela perspectiva de Mabel, que ainda criança adentrou com a mãe, pela porta de serviço, o apartamento, e com ela dividiu a cozinha e o quarto de empregada; também lá, fez amigos, amores, e viveu dissabores, principalmente, em se tratando da relação com Camila, a filha dos patrões. É no espaço da cozinha que Mabel e sua mãe comemoram uma grande conquista: a aprovação da jovem no vestibular, o que transformam ambas, principalmente porque Mabel reflete: “Eu e mamãe continuávamos ali, na gaiola dourada do edifício Golden Plate. Éramos pássaros dentro de um viveiro luxuoso, mas uma jaula não deixa de ser vilã da liberdade só porque é pintada de dourado?” (p. 69). Aquele é também um cenário de aprisionamento.

Na segunda parte do romance, a história é narrada pela perspectiva de Eunice, por meio da qual se constrói uma linha temporal que ilustra a trajetória do trabalho doméstico no Brasil: da senzala ao quarto de despejo. A mãe de Mabel, no auge do seu/nosso processo de reflexão, afirma, relembrando a trajetória das mulheres de sua família: “além dos espaços apertados que ocupávamos, o silêncio era um companheiro. Era preciso estar presente sem estar. Uma boa serviçal é silenciosa, e a criança que é filha dessa mulher também deve ser” (p. 97). Todavia, alimentada pela partilha da leitura pela filha, pondera: “era como dizia num dos livros de uma escritora chamada Conceição Evaristo, que Mabel passou a devorar e de vez em quando lia pra mim: ‘em boca fechada não entra mosquito, mas não cabem risos e sorrisos’” (p. 97). Aquele é também um cenário de tolhimento.

Já a última parte – Solitárias – os lugares nos quais Eunice e Mabel viveram, bem como aqueles pelos quais passam a transitar são personificados, e pela voz narrativa deles outro olhar sobre as páginas-espaços é possível: Quarto de empregada, Quarto de porteiro, Quarto de hospital, Quarto de descanso, sinalizando uma transformação, uma nova vida, cujo crime ocorrido no Golden Plate parece ter sido um dos desencadeadores. Surge um novo espaço de vida, conquistado por duas mulheres – mãe e filha – que juntas passam a reconhecer e a revelar a mentalidade elitista, traduzida em muitos discursos e ações que, aparentemente em prol da igualdade, visam a permanência de cada um em seu lugar e que traduzem muito bem os nossos tempos: a empregada que a patroa afirma ser “considerada da família”, a demonização das cotas raciais, o julgamento sobre as decisões sobre o corpo da mulher negra, as bandeiras do Brasil estendidas nas janelas, enfim. É lindo ler que na última parte Eunice e Mabel estão livres! Ambas estão livres também do peso de “serem gratas” e, em virtude disso, serem levadas a proteger quem seria a responsável pelo crime: a morte de uma criança, no pátio luxuoso do Golden Plate.

 

Referência

https://www.revistabula.com/57068-os-10-melhores-romances-brasileiros-de-2022/

CRUZ, Eliana Alves. Solitária. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

 

* Elisangela A. Lopes Fialho é mestre em Teoria da Literatura pela UFMG, Doutora em Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC-Minas, professora do IFSULDEMINAS - Campus Pouso Alegre e pesquisadora da literatura afro-brasileira e da prosa de Machado de Assis. É coautora de Literatura afro-brasileira: 100 autores do século XVIII ao XXI (2. ed., 2019), Literatura afro-brasileira: abordagens na sala de aula (2. ed., 2019) e de Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica (2Reimpr., 2021).

Link para texto completo

http://www.letras.ufmg.br/literafro/arquivos/autores/Eliana_Alves_Cruz_resenha_Elis_Solitria1.pdf

 

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terça-feira, 21 de março de 2023

O ASSUNTO É? - Identidade

 

MULHER PERDIDA

Por vontade própria

Rompe a opressão e se faz MULHER DE VIDA LIVRE

Livre das prisões seculares

Heterossexuais,

Monogâmicas,

Normativas,

Da misoginia

Da homofobia,

Da transfobia,

Da bifobia,

Livre do estupro,

Do incesto,

Do casamento,

Das ordens do pai,

Dos rótulos,

Das determinações do marido

Não quer ser moça de família

Rainha do lar

Exemplar

Filha de maria

Mulher para casar.

 


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quinta-feira, 2 de março de 2023

DIÁRIO DE LEITURA


 Depois de um tempo de silêncio necessário na coluna, nada melhor que um texto sobre um dia de experimentação de um dos meus grandes desafios de vida: silenciar-me.


DAQUELE NOSSO SINGELO SILÊNCIO

 

Eu não sei calar.

Evidente que há momentos em que não falo. Por fora. Por dentro sou um turbilhão. Quase sempre, mesmo calada, eu estou falando.

Falar demais é um preço alto, porque não me esvazio. Talvez por isso, em mim, as coisas pareçam, às vezes, passar muito rápido. Porque ficam pouco.

Meus silêncios são sempre fortes. Porque eu não sei fazer silêncios. Quando eles existem, é porque não podem mesmo deixar de ser. É porque não há absolutamente nada dentro de mim que conheça de alguma forma a palavra daquele momento. E ele me sujeita a calar.

E não é uma estranheza de novidade. Às vezes, é um toque. É: o toque, já tão bem conhecido da pele. Um toque chega despretensiosamente, como um toque qualquer, e, então, arrebata um silêncio.

Pleno.

E o engraçado é que, quando o silêncio chega, é como se ele sempre estivesse ali. Eles. Neste caso, silêncio e toque. É como se sempre tivessem existido para ser aquele momento de sobrenadar.

É como se eu fosse desde sempre a espera deste quieto. E como se, a partir de então, eu não pudesse ser outra, mas apenas essa que o conhece.

O tempo acentuou meu desejo pelo silêncio. Sou uma busca, mal aplicada, e inglória, de falar menos.

Mas então veio o nosso. Curto e sob o céu nu. E depois dele, o que eu desejo mesmo, ao menos por um tempo, é apenas calar mais. E isso é só porque eu preciso serenar.

Sei que é um eufemismo bobo que espera não macular sua importância. É um medo de que os ruídos de menos acabem por banalizar a plenitude de calar. E que, silenciando demais, tudo se faça sossego, e eu me esqueça do torpor de que sobrepujar a inquietação é estar tão dentro de mim. E, dessa vez, e sobretudo, pelo outro.



Agenda

Na Noite de 10 de março, em Jequitinhonha, lançamento do livro “A Invenção das Coisas”, de Cláudio Bento, no Hotel Bela Vista



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MEMÓRIA CULTURAL - UM CASO DE AMOR NA ROTA BAHIA-MINAS

  Imagem: Internet   Seu maquinista! Diga lá, O que é que tem nesse lugar (...) Todo mundo é passageiro, Bota fogo seu foguista ...