quarta-feira, 6 de maio de 2020

NARRATIVAS DO FESTIVALE - Por Luis Santiago


Natural de Pedra Azul, Mestre em História Social pela Universidade Estadual de Montes Claros (2013), possui graduação em História também pela Unimontes (2007). Escritor com títulos publicados sob o nome de Luís Santiago, com destaque para a série O Vale dos Boqueirões, sobre a história do vale do Jequitinhonha, da qual sei volumes já foram publicados, e para a dissertação O mandonismo mágico do sertão, agraciada com a primeira colocação do Prêmio Sílvio Romero 2014 (do CNFCP/IPHAN) e publicada em 2015., Já exerceu função na diretoria da FECAJE, fez parte de comissões da noites literárias do Festivale, bem como já foi jurado e homenageado na mesma.


Lembranças do mês de julho de 1993
Por  Luís Santiago

Entre as melhores lembranças que guardo desta vida atribulada estão as de Minas Novas, em julho de 1993. Ocasião em que conheci a cidade-mãe, de quem agora trato. Foi também a primeira vez que participei da organização do Festivale, um dos encarregados pelo funcionamento da “secretaria das oficinas”.
O Festival de Cultura Popular do Vale do Jequitinhonha - Festivale acontece a cada ano em uma cidade diferente da região. Tinha assistido aos shows musicais do 3º Festivale, em Itaobim (1982), e planejara, sem sucesso, ir ao Festivale de Virgem da Lapa (1987), e ao primeiro de três que aconteceram em Jequitinhonha (1991). Em 92, contudo, participei do Festivale de Bocaiuva (primeiro de dois), e no ano seguinte, fiz parte da organização do 14º Festivale, em Minas Novas, o segundo que aconteceu na cidade.
Estava no Fanado uma semana antes da abertura do festival e dormi a primeira noite no quarto andar do Sobradão. Dormi bem, mas no dia seguinte aluguei um barraco, desses de seis metros de frente, na beira do Fanado; sobretudo pela privacidade, tanto mais que, poucos dias depois, minha companheira de então, Maria Lúcia Yoshiko “Yoshin”, chegou a Minas Novas para participar do evento.
Havia certa apreensão entre os organizadores devido ao Festival de Cultura, na vizinha Capelinha, e ao Festtur, que é o Festival da Canção de Turmalina, a pouco mais de vinte quilômetros, na mesma data (mesmo fim de semana) em que Minas Novas sediava o festival itinerante. O Festtur trazia muitas atrações de renome nacional, enquanto o Festivale contava com um único artista da grande mídia, o cantor Geraldo Azevedo. Hoje vejo que eram vãs essas preocupações, ainda que muita gente tenha saído de Minas Novas para assistir aos shows de Turmalina, e o pessoal de Capelinha, incluídos os agentes culturais do cenário mineiro engajados com o movimento capelinhense, praticamente não apareceu no Fanado. O Festivale tem um público fiel, e só os participantes, na casa do milhar, preenchem uma praça, mesmo ampla.
Na verdade, nem posso dizer nada ao certo, pois não assisti aos shows nem em Minas Novas nem em Turmalina nem fui ao Festival da Cultura em Capelinha; nessa época sequer conhecia as duas cidades-filhas (Turmalina e Capelinha). A razão de não assistir aos shows é simples: tinha que chegar à Escola Estadual Presidente Costa e Silva antes das sete horas da manhã, para que as oficinas começassem às sete em ponto. Todos os dias, acordava antes das seis, vestia um calção e tomava banho nas águas geladas, e então límpidas, do Fanado, que formava uma praia ali, apropriada para as lavadeiras. O Fanado já não era um rio, tanto mais em julho, mas era um ribeirão considerável, e podia ser comparado, sem desfavor, ao caudaloso ribeirão do Salto, no qual também já me banhei. As águas do Fanado eram claras naquele tempo, como as de um regato. Por isso fiquei triste ao passar sobre a ponte do Fanado, vindo de ou indo para Turmalina, e rever a aparência do ribeirão de outrora. A impressão que me causou pode ser definida em duas palavras cruéis: esgoto estagnado.
Renovado pelo banho matutino, trocava de roupa e subia a longa ladeira até a Escola Costa e Silva. Primeiro, passava em frente à Rodoviária e ao Sobradão, naquela que fora outrora a praça da Matriz. Subia pela rua Direita, que, como as demais ruas Direitas, levava “direto” até as portas da matriz, mas hoje não mais, no caso de Minas Novas [a matriz de São Pedro, da década de 1730, foi demolida e em seu lugar foi construída a Rodoviária]. Em seguida, passava pela frente do sobrado onde hoje funcionam a Prefeitura e a agência do Banco do Brasil, com a praça em que fica a Prefeitura velha (da década de 1930) adiante, à direita, e o Fórum Tito Fulgêncio no meio de uma praça pequena, que ocupa por inteiro, salvo o passeio e pequenos canteiros. Logo acima, à direita de quem sobe, fica a Escola Estadual José Bento Nogueira (coronel Zebentinho), mais uns passos à frente, à esquerda, a rua curta (tem um canteiro com uma árvore no meio, se bem recordo) de acesso à igreja de São Francisco e, à direita, temos uma rua estreita que leva ao Mercado. Construção antiga, quiçá do início do século xx, talvez fosse até grande no tempo dos tropeiros, mas suas dimensões são insuficientes para atender à demanda dos nossos dias.
Continuando o trajeto, ladeira acima, chega-se à linda igreja do Amparo, que, da mesma forma que o Fórum, ocupa o centro de uma pequena praça, com carros subindo e descendo dos lados do templo. Cem metros, ou pouco mais, pela mesma via, mesma ladeira, ainda que com nome diferente, e chegamos à igreja do Rosário, também lindíssima, com certa assimetria que lhe empresta um charme todo próprio. O Rosário obedece ao mesmo critério urbanístico do Fórum e do Amparo, e ocupa uma espécie de praça, no centro da rua principal de Minas Novas, que aqui já tem a largura de uma avenida. Pouco acima da igreja do Rosário, à direita, fica a EE Presidente Costa e Silva, destino daquelas manhãs inesquecíveis.
Coisa de um quilômetro de ladeira íngreme, vencido sem esforço, num tempo em que eu ainda não completara 32 anos. A ladeira que vai do Sobradão até o Rosário, com diferentes nomes, é o centro (um eixo) tanto comercial quanto histórico de Minas Novas. Mais comercial, na base, perto do Sobradão, vai se tornando mais e mais residencial, mas o largo atrás do Rosário, no alto da ladeira, reúne, além da EE Costa e Silva, o Cemitério, o Hospital Doutor Badaró Júnior e numerosos estabelecimentos comerciais.
Nas muitas vezes que retornei ao Fanado, continuei restrito a esse eixo central da cidade, alcançando, quando muito, as ruas de cima (igreja de São Francisco), ou as ruas de baixo (igreja de São José, Mercado, nova matriz), paralelas à direita e à esquerda da ladeira, ou, no máximo, indo um pouco adiante do Hospital. Também não é muito o que conheço do município minas-novense. Sei que, mesmo tendo sofrido repetidos desmembramentos desde o fim do século xviii, Minas Novas possui, ainda hoje, um território considerável, com muitos povoados, alguns populosos,. Entre eles, estão Bem Posta, Baixa Quente, Indaiá, Lagoa Grande, Córrego do Meio e Córrego da Folha. Cruzinha e Baixa Quente foram elevados a sede de distrito.
A maior parte do território de Minas Novas é constituída por chapadões, ou altiplanos, mas o relevo é bastante acidentado nos capões, nos grotões e nos boqueirões, que são os terrenos mais próprios para a agricultura familiar. A parte plana quase toda ocupada pelas vastas plantações de eucalipto, chamadas impropriamente “reflorestamento”. Para a instalação das primeiras plantadoras de eucalipto, muitas delas siderúrgicas, o governo desapropriou os chapadões mais vastos. Outras empresas ligadas à monocultura do eucalipto foram comprando glebas, estimuladas tanto pelo baixo preço do hectare quanto pela dificuldade financeira que o agricultor familiar enfrenta ciclicamente.
           Mesmo com o grande número de agricultores desalojados dos capões de mato no meio da chapada, muitos grupos familiais de lavradores continuam explorando a parte mais acidentada do território de Minas Novas, a exemplo do que acontece em outros municípios da região. As propriedades são exploradas pelas famílias estendidas; originalmente irmãos, depois primos, que vão ficando cada vez mais distantes. São comunidades tradicionais, muitas delas ainda seguem o padrão cultural dos cacaieiros, outras são de origem quilombola. As migrações, até pouco, seguiam, de preferência, em direção ao oeste paulista, para o corte da cana das grandes usinas, mas trabalhadores sazonais vão para onde são chamados, por intermédio dos gatos, que arcam, inclusive com as responsabilidade trabalhistas, e criminais, isentando os verdadeiros patrões (contratadores).
Dos povoados minas-novenses, o único que já tive oportunidade de visitar foi o da Baixa Quente, mesmo assim rapidamente. Um bom amigo, Marcos Wanderley Lacerda, foi fazer um serviço lá, e me levou com ele. Saímos de Pedra Azul pela hora do almoço, talvez um pouco depois, passamos em Araçuaí e Jenipapo de Minas; depois, ganhamos a estrada de terra por mais uns trinta quilômetros; o trajeto todo não chegou aos trezentos, acredito. Estávamos na localidade de tardinha e pelas nove ou dez da noite regressávamos para as respectivas moradias.
Curioso que na vizinha Araçuaí também existe um povoado chamado Baixa Quente. A Baixa Quente de Minas Novas talvez seja posterior, pois, até onde vi, não é uma baixa. Fica em terreno acidentado, num vale sinuoso, em torno de uma ponte, que foi quiçá ponto de vau do ribeirão que passa ali (não tomei nota do nome). A maioria das casas da localidade construída ao longo da estrada que vem de Jenipapo e segue quiçá para Minas Novas. À direita, há todo um arruado, inclusive praça com a matriz de Nossa Senhora Aparecida, mas tão somente umas poucas residências e a escola pública, em prédio moderno, erguidas do outro lado da ponte, na estrada que parece ser menos transitada, mas também leva, por certo, a povoados e comunidades do geraisão  sem fim.

Capítulo do livro Minas Novas - A cidade-mãe (2019, p. 259-264, sexto volume da série O vale do boqueirões)

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