quarta-feira, 20 de maio de 2020

NARRATIVAS DO FESTIVALE - Por Claudio Bento


MEMÓRIA DO FESTIVALE - CAPÍTULO DOIS
Por Claudio Bento

O Festivale-Festival da Cultura Popular do Vale do Jequitinhonha já nasceu com um slogan, um belo e sugestivo slogan: Vale, Vida, Verso e Viola. E passou a ser na vida de muitas pessoas uma espécie de devoção, de rito, de religião e a cada ano mais e mais pessoas acorriam a ele. A direção do Movimento Cultural, representada por Tadeu Martins, Aurélio Silby e outros, prosseguiam com o trabalho de dar vez e voz ao povo do vale. Mesmo sem grandes recursos financeiros, mesmo sabendo que muita gente não agradava em ver suas cidades invadidas por aquela legião de cabeludos, mesmo sem grande apoio do poder público, o movimento crescia em popularidade e beleza. Os festivais da canção eram pagos, comprávamos ingressos para assistir à maior manifestação cultural do Festivale, a música produzida pelos compositores do vale, uma joia rara que fez surgir nomes importantes da música popular como Paulinho Pedra Azul, Saulo Laranjeira, Rubinho do Vale, Heitor Pedra Azul, Célia Mara, Titane e Tadeu Franco. Realizados nos mercados municipais os festivais da canção eram o nosso Woodstock, com nuvens espessas de fumaça de marijuana a inundar o ambiente escuro dos mercados de Itaobim, Pedra Azul, localidades que receberam até então o maior movimento de cultura do vale. Os festivais da canção já eram conhecidos da população do vale. Várias cidades como Jequitinhonha, Almenara, Jacinto, Rubim, Pedra Azul e Joaíma já realizavam seus festivais. Em um deles realizado na quadra do Automóvel Clube de Jequitinhonha, conheci o poeta Gonzaga Medeiros concorrendo com sua "Pega a Faca Jesus e Reparte Este Pão", música que deixou-me extasiado no momento da sua execução na quadra do clube. Um fato marcante marcou o Festival da Canção de Joaíma. Estávamos todos na cidade às quatro horas da tarde fazendo a ronda dos bares, quando vimos um jovem muito estranho, descalço, roto, cabeludo, puxando um saco de amianto pelas mãos. O saco estava cheinho da erva conhecida como maconha e o jovem era compositor e concorrente do festival, seu nome: Timbé da Gameleira. Timbé morava no mato no município de Rubim e vivia uma vida de ermitão, plantando o que comia e até o que fumava. Outro fato marcante foi a aparição no festival de um garoto, um menino concorrente do festival que tocava violão com a mão esquerda e possuía uma voz muito bonita: era o cantor e compositor Biló.
A viagem para o Festivale de 1983 na cidade de Minas Novas, antes de ser uma aventura, foi uma aula de consciência política e cultural para mim, um jovem de vinte anos. Embarcamos num jeep na cidade de Itaobim. Eu, Gonzaga Medeiros, Wesley Pioest, José Machado, Tadeu Martins e o cantor e compositor João Carlos Cavalcanti. Inacreditável que um jeep comportasse tal quantidade de tripulantes, mas fomos palmilhando a terra vermelha das estradas do vale, subindo o vale margeado pelo belíssimo rio Jequitinhonha. Os tripulantes do jeep conversavam sobre livros, política, poesia e, claro, sobre os novos rumos que o Festivale deveria tomar. Eu viajava calado, ouvindo tudo aquilo e guardando dentro de mim.
No início de 1983 em Jequitinhonha, o poeta Wellington Miranda apresentou-me uma brochura, um livrinho com capa de cartolina, datilografado com poemas de sua predileção, que eu sabia ser de Manuel Bandeira, Drummond e Ferreira Gullar. Dei uma olhada no livrindo e disse a ele, ora, por quê não publicamos nossos próprios poemas? Ele então me respondeu que para produzirmos livrinhos em maior quantidade, só se fosse usando o mimeógrafo. Eu disse, então vamos publicar usando o mimeógrafo. Na época toda escola dispunha do interessante instrumento chamado mimeógrafo, um velho conhecido, pois era com ele que as professoras imprimiam provas e trabalhos escolares para os estudantes. A prefeitura municipal também dispunha de um mimeógrafo e foi com ele que imprimimos meu primeiro livro: Jequitinhonha, Barro e Coração, com capa de cartolina onde destacava-se o título impresso na Tipografia Liberdade, do meu tio Sebastião Bento, que também ilustrou a capa com uma pintura em tinta guache onde apareciam potinhos de barros superpostos. Se não me engano produzimos algo em torno de trinta e dois exemplares do livro, que distribuí em Minas Novas para o pessoal da direção do Festivale, para os amigos e para algumas moças que conheci no acampamento, nos becos, ruelas e ladeiras da cidade barroca do vale.
Em Minas Novas o festival da canção foi realizado em praça pública e a canção "Frutear", do Grupo Musical Puchichá foi a grande vencedora do festival. Na mesma ocasião tive o imenso prazer de conhecer o cantor Arnô Maciel, que convidou-me para tomar café com ele no bonito sobrado colonial em que morava. Lá também conheci uma mocinha muito interessada por tudo o que estava acontecendo, era Deyse Magalhães, filha da cidade de Minas novas e irmã do compositor Dalton Magalhães que apresentava suas canções nos festivais ao lado da sua esposa Vânia, também cantora.
É importante frisar que todos íamos para o Festivale sem a certeza de onde iríamos comer ou dormir, mas sempre aparecia alguém da cidade disposto a alojar as pessoas, oferecer um prato de comida ou um cantinho no quarto de visitas. Mas muita gente preferiu acampar às margens do rio Fanado sob uma temperatura de 10°. Era uma vida aventureira, à moda da contracultura, da ideologia hippie onde apenas o grande espírito da arte e da amizade se fazia valer e imperar. Ninguém tinha muito dinheiro e sim muito talento para criar canções, poemas, livros, artesanato.
O Festivale era produzido de fora para dentro, quer dizer, tudo era organizado na capital do estado e trazido para o vale. Tenho plena certeza que não existia a gana incessante pelo dinheiro por parte dos artistas e dos organizadores. O motor da arte funcionava muito mais pelo coração e pela alma e o Festivale era puro coração, pura alma.

Um comentário:

  1. Você relata maravilhosamente e dá pra fazer uma viagem perfeita cheia de emoções e lembranças. Participei de 03 Festivales e posso dizer com certeza e pureza d'alma,que é o melhor do mundo. Gratidão!👏🏿👏🏿👏🏿

    ResponderExcluir

MEMÓRIA CULTURAL - UM CASO DE AMOR NA ROTA BAHIA-MINAS

  Imagem: Internet   Seu maquinista! Diga lá, O que é que tem nesse lugar (...) Todo mundo é passageiro, Bota fogo seu foguista ...