MEMÓRIA DO FESTIVALE - CAPÍTULO DOIS
Por Claudio Bento
O Festivale-Festival da
Cultura Popular do Vale do Jequitinhonha já nasceu com um slogan, um belo e
sugestivo slogan: Vale, Vida, Verso e Viola. E passou a ser na vida de muitas
pessoas uma espécie de devoção, de rito, de religião e a cada ano mais e mais pessoas
acorriam a ele. A direção do Movimento Cultural, representada por Tadeu
Martins, Aurélio Silby e outros, prosseguiam com o trabalho de dar vez e voz ao
povo do vale. Mesmo sem grandes recursos financeiros, mesmo sabendo que muita
gente não agradava em ver suas cidades invadidas por aquela legião de
cabeludos, mesmo sem grande apoio do poder público, o movimento crescia em
popularidade e beleza. Os festivais da canção eram pagos, comprávamos ingressos
para assistir à maior manifestação cultural do Festivale, a música produzida
pelos compositores do vale, uma joia rara que fez surgir nomes importantes da
música popular como Paulinho Pedra Azul, Saulo Laranjeira, Rubinho do Vale,
Heitor Pedra Azul, Célia Mara, Titane e Tadeu Franco. Realizados nos mercados
municipais os festivais da canção eram o nosso Woodstock, com nuvens espessas
de fumaça de marijuana a inundar o ambiente escuro dos mercados de Itaobim,
Pedra Azul, localidades que receberam até então o maior movimento de cultura do
vale. Os festivais da canção já eram conhecidos da população do vale. Várias
cidades como Jequitinhonha, Almenara, Jacinto, Rubim, Pedra Azul e Joaíma já
realizavam seus festivais. Em um deles realizado na quadra do Automóvel Clube
de Jequitinhonha, conheci o poeta Gonzaga Medeiros concorrendo com sua
"Pega a Faca Jesus e Reparte Este Pão", música que deixou-me
extasiado no momento da sua execução na quadra do clube. Um fato marcante
marcou o Festival da Canção de Joaíma. Estávamos todos na cidade às quatro
horas da tarde fazendo a ronda dos bares, quando vimos um jovem muito estranho,
descalço, roto, cabeludo, puxando um saco de amianto pelas mãos. O saco estava
cheinho da erva conhecida como maconha e o jovem era compositor e concorrente
do festival, seu nome: Timbé da Gameleira. Timbé morava no mato no município de
Rubim e vivia uma vida de ermitão, plantando o que comia e até o que fumava.
Outro fato marcante foi a aparição no festival de um garoto, um menino
concorrente do festival que tocava violão com a mão esquerda e possuía uma voz
muito bonita: era o cantor e compositor Biló.
A viagem para
o Festivale de 1983 na cidade de Minas Novas, antes de ser uma aventura, foi
uma aula de consciência política e cultural para mim, um jovem de vinte anos.
Embarcamos num jeep na cidade de Itaobim. Eu, Gonzaga Medeiros, Wesley Pioest,
José Machado, Tadeu Martins e o cantor e compositor João Carlos Cavalcanti.
Inacreditável que um jeep comportasse tal quantidade de tripulantes, mas fomos
palmilhando a terra vermelha das estradas do vale, subindo o vale margeado pelo
belíssimo rio Jequitinhonha. Os tripulantes do jeep conversavam sobre livros,
política, poesia e, claro, sobre os novos rumos que o Festivale deveria tomar.
Eu viajava calado, ouvindo tudo aquilo e guardando dentro de mim.
No início de
1983 em Jequitinhonha, o poeta Wellington Miranda apresentou-me uma brochura,
um livrinho com capa de cartolina, datilografado com poemas de sua predileção,
que eu sabia ser de Manuel Bandeira, Drummond e Ferreira Gullar. Dei uma olhada
no livrindo e disse a ele, ora, por quê não publicamos nossos próprios poemas?
Ele então me respondeu que para produzirmos livrinhos em maior quantidade, só
se fosse usando o mimeógrafo. Eu disse, então vamos publicar usando o
mimeógrafo. Na época toda escola dispunha do interessante instrumento chamado
mimeógrafo, um velho conhecido, pois era com ele que as professoras imprimiam
provas e trabalhos escolares para os estudantes. A prefeitura municipal também
dispunha de um mimeógrafo e foi com ele que imprimimos meu primeiro livro:
Jequitinhonha, Barro e Coração, com capa de cartolina onde destacava-se o
título impresso na Tipografia Liberdade, do meu tio Sebastião Bento, que também
ilustrou a capa com uma pintura em tinta guache onde apareciam potinhos de
barros superpostos. Se não me engano produzimos algo em torno de trinta e dois
exemplares do livro, que distribuí em Minas Novas para o pessoal da direção do
Festivale, para os amigos e para algumas moças que conheci no acampamento, nos
becos, ruelas e ladeiras da cidade barroca do vale.
Em Minas
Novas o festival da canção foi realizado em praça pública e a canção
"Frutear", do Grupo Musical Puchichá foi a grande vencedora do
festival. Na mesma ocasião tive o imenso prazer de conhecer o cantor Arnô
Maciel, que convidou-me para tomar café com ele no bonito sobrado colonial em
que morava. Lá também conheci uma mocinha muito interessada por tudo o que
estava acontecendo, era Deyse Magalhães, filha da cidade de Minas novas e irmã
do compositor Dalton Magalhães que apresentava suas canções nos festivais ao
lado da sua esposa Vânia, também cantora.
É importante
frisar que todos íamos para o Festivale sem a certeza de onde iríamos comer ou
dormir, mas sempre aparecia alguém da cidade disposto a alojar as pessoas,
oferecer um prato de comida ou um cantinho no quarto de visitas. Mas muita
gente preferiu acampar às margens do rio Fanado sob uma temperatura de 10°. Era
uma vida aventureira, à moda da contracultura, da ideologia hippie onde apenas
o grande espírito da arte e da amizade se fazia valer e imperar. Ninguém tinha
muito dinheiro e sim muito talento para criar canções, poemas, livros,
artesanato.
O Festivale
era produzido de fora para dentro, quer dizer, tudo era organizado na capital
do estado e trazido para o vale. Tenho plena certeza que não existia a gana
incessante pelo dinheiro por parte dos artistas e dos organizadores. O motor da
arte funcionava muito mais pelo coração e pela alma e o Festivale era puro
coração, pura alma.
Você relata maravilhosamente e dá pra fazer uma viagem perfeita cheia de emoções e lembranças. Participei de 03 Festivales e posso dizer com certeza e pureza d'alma,que é o melhor do mundo. Gratidão!👏🏿👏🏿👏🏿
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