É o olho que faz o horizonte.
(Ralph
Waldo Emerson)
Vou contar uma história sobre a minha
cidade. E conto com muito respeito e amor.
Desde que me entendo por gente, dou
notícia de uma certa festa popular, a mais democraticamente popular que vejo
por aqui. Que vejo por aí também.
Existe aqui um dia, na verdade não é
exatamente um dia, mas um inespecífico conjunto de dias que se tornam um tempo
só: sete-de-setembro. Que com nosso sotaque preguiçoso se torna set-setemb. Não
importa se você está no dia 06 ou no dia 08, você sempre está em
sete-de-setembro. E ainda mais, de acordo com as nuances do calendário,
sete-de-setembro pode buscar os dias 05 ou 04, ou se estender até o dia 10.
E se você achou estranho até aqui,
imagine quando souber que sete-de-setembro se tornou também um lugar.
Assim, cabe a mesma resposta para
perguntas diferentes: Quando você comprou? Em sete-de-setembro. Onde você vai?
Para sete-de-setembro. Porque você comprou? Ora, porque era sete-de-setembro.
Sim! Isso mesmo, PORQUE era. O que a principio soa estranho, é na verdade
encantador: não consigo imaginar, no momento, algo mais genuinamente cultural
do que um dia que renomeia outros dias, torna-se um tempo, torna-se lugar e até
um motivo.
Evidentemente não é comum perguntar a
alguém porque comprou algo. Aqui é. E é por um simples motivo, a nossa
tendência especial de comprar coisas desnecessárias por sete-de-setembro. Por.
Ah, sim! Que péssima anfitriã sou eu.
Não apresentei ainda a festa a vocês. Vamos por partes. As compras. As compras,
embora representem apenas uma das muitas facetas da festa, são por si uma
verdadeira epopeia. Muita gente da cidade, e até da região, junta dinheiro o
ano todo – ou pelo menos uma parte dele – para comprar nas barraquinhas. Uma
das principais Avenidas, é totalmente tomada por camelôs. É a Avenida de
entrada da cidade, o que complica a entrada e saída, as linhas fixas de ônibus
não chegam ao outro lado, é preciso fazer um desvio. Não tem problema. A cidade
entende. Enfim, nas barracas vende-se de camisola a panela, de martelo a cueca,
de cachorro-quente a maçã-do-amor, de ioiô a walkman.
Eu sei, não se vende mais walkman, mas
quando eu era menina sim. Na verdade falei de propósito para inserir mais um
tópico do âmbito comercial da festa, o da tecnologia. Sete-de-setembro
acompanha todos os avanços tecnológicos, e, se quando eu era pequena (menor),
não cabia em mim de felicidade mesmo quando tinha que usar uma caneta para
ouvir novamente certa música favorita, já que o botão com essa função havia
quebrado na primeira semana, muita gente posteriormente saboreou o gostinho de
ouvir músicas no diskman, no mp3, e em toda gama de mp’s com números tantos.
Hoje você pode comprar capinhas para
celular, baterias para celular e até celular! Brinquedos eletrônicos,
brinquedos da moda, brinquedos bobos, brinquedos desnecessários – esses últimos
aos montes. E é interessantíssimo como as crianças dominadas pela tecnologia,
sofrem de algum encantamento repentino e voltam a adorar momentaneamente toda
gama de brinquedos que outrora desprezavam: bonequinhos, bonequinhas, carrinhos
de fricção, piões, minigames. E como depois querem esconder a todo custo que
foram comprados na ocasião peculiar. É aqui que sete-de-setembro ganha quase
uma personalidade. Como se todos os vendedores se fundissem num só. E a gente
gritava: olha o sapato DE set-setemb.
Eu, criança, jovem, ou adulta, já
passei horas ali, porque o dinheiro não era do tamanho da variedade de coisas
que eu precisava urgentemente comprar. Ainda que nunca fosse usar. E você quer
encontrar, entre centenas, todas as barracas que tivessem os produtos que
queria, para se certificar de que está realmente comprando o, incrivelmente,
mais barato. E, nessa busca, você encontra mais coisas que não estava
procurando e que passa a precisar. E volta para casa com uma infinidade de
coisas: um tamanco barulhento, uma blusa colorida demais, duas saias, uma
bolsa, algumas panelas de guisadinho, duas toalhas, alguns eletrônicos,
maquiagem, esmalte, coisas tantas que meus pais me obrigavam a gostar, umas
coisas que tenho vergonha de gostar e uns acessórios, que sempre foi o que eu
particularmente mais gostava.
Tinha sempre um cordãozinho com o nome
da gente, seja com letrinhas de aço, de plástico ou em forma de dadinho. Como
eu gostava desses cordões. Fazia questão de escolher cada letrinha, embora
fossem todas muito parecidas. Voltava com três de muitas coisas. Por exemplo,
três anéis, que só em casa eu percebia que eram todos praticamente iguais. Não
eram só os anéis. Imagino que não era só comigo.
Sete-de-setembro é uma
festa-data-local-motivo versátil. Há de tudo. Dois meses antes não se compra
mais nada na cidade. Vou deixar para comprar em sete-de-setembro. E tudo que
você precisa sabe que estará lá. Se você não encontrou, com certeza não
procurou de acordo.
Há um ponto que eu adoro reparar: como
o imaginário popular consegue convenientemente apartar a classificação cronológica
da cultural. Embora o sete, fosse toda aquela facção de setembro, o sonho dos
compradores compulsivos acontecia mesmo era nos dias 08 e 09. E embora todos
saíssem de casa com destino à sete-de-setembro, inconscientemente eles sabiam
que era nos dias posteriores à comemoração da independência que aconteciam as
maiores liquidações. E já ouvi: depois que passa o dia 07, sete-de-setembro
fica barato demais. E eu, que não concebia como algo podia ficar ainda mais
barato do que eu tinha visto, traduzia isso para ‘de graça’. E ficava triste
por não poder atravessar o rio mais uma vez e conseguir todos aqueles
brinquedos pouquíssimo “brincáveis” que eu tinha desejado tanto ao visitar as
barracas.
É, eu tinha que atravessar o rio. E de
canoa. Nossa cidade é cortada ao meio, não milimetricamente, mas geográfica,
social e culturalmente pelo Rio Jequitinhonha. Já houve tempo em que
sete-de-setembro era a única ocasião de trégua entre as tribos do Capa-Bode e
Capa-Jegue. Incrível como toda rixa sumia na áurea mágica da festa. Nós, do
lado de cá, transitávamos tranquilos, sem medo de retaliação em “d’outro lado”.
Hoje, com a construção da ponte, de certa forma tomamos tenência e as
diferenças diminuíram como um todo. Mas, claro, em tempos de sete-de-setembro o
amor fraterno se acentua. O que é facilmente observado na alegria com que as
pessoas se esquivam, se espremem e são empurradas para transitar no bem pouco
espaço de rua que resta dentre o amontoado de barracas.
Não é incomum ouvir ao fim do período
sete-de-setembro, pessoas reclamando de dores pelo corpo, sobretudo nas pernas.
Escrevo rindo – mas preocupada, claro – que, na verdade, para muita gente é a
única ocasião do ano em que se pratica atividade física considerável. Para quem
não tem preparo, passar 3 a 5 horas caminhando pela quilométrica extensão de
sete-de-setembro pode ser estarrecedor. Mas vale ressaltar que se as pessoas
não se preparam física, espiritualmente há todo um ritual, de escolher uma
roupa fácil de ser sobreposta, uma sandália fácil de ser tirada, uma lista
mental de todas as necessidades.
Os vendedores, esses se derramam, aos
montes, fazem amizade entre si e com a população. Estava certa feita, em
sete-de-setembro, em casa de minha tia, quando uma sua amiga vendedora foi
visitá-la. Por saudade. Por amizade. Eles se conhecem pelo nome, trocam
dinheiro em miúdos uns para os outros, olham as barracas de quem precisa sair,
fazem festa e dormem ali. Ah, isso me atiçava. Eu sonhava poder dormir como
umas crianças que eu via, ali, debaixo daquele fantástico mundo de tudo
‘embarracado’.
Só não sonhava com isso mais do que com
as maçãs-do-amor. Eu não gostava muito de maçã, mas era o amontoado de maçã com
açúcar mais gostoso do planeta. Apesar de não ter visto muitas maças-do-amor
nos lugares do planeta por onde tenho passado.
Bom, sete-de-setembro não é
sete-de-setembro se não faltar energia. Sempre e mais de uma vez, a escuridão
toma conta de tudo e não quero escrever sobre o que pode acontecer nesse
período de breu, para não julgar ninguém. É um festival de gritos, risadas e
segredos. E quando chove então, a muvuca é total.
Em/no/por sete-de-setembro, seja nas
compras, seja no desfile, seja na igreja, a gente encontra gente que não vê há
meses, até anos. Gente da nossa cidade. Gente da região. Gente que mora fora.
Gente que nunca veio. E fica todo mundo tão amigo, todo mundo cumprimentando
todo mundo, uma beleza.
E aqui passamos para mais um pedacinho
da festa. O desfile de sete-de-setembro. Algum desavisado pode imaginar que a
referência à data seja exclusivamente pela independência da república, mas já
tomou uma proporção tal ultrapassa o cívico e entra no íntimo da cultura
popular. Não é o desfile de 07 de setembro, é o desfill-d-set-setemb. O desfile
da festa-data-local-motivo sete-de-setembro. Da pátria e de Itinga. E é um
momento de grande importância para a cidade.
O carinho é tanto que mesmo convivendo
e até reclamando dos ensaios da fanfarra, que antecedem a festa, no dia do
desfile toda a cidade e visitantes saem às ruas para prestigiar. Claro que a
importância é relativa. Tem gente que desfila por nota, pra viajar, pra ter
status. Mas acredite, os jovens desfilam voluntariamente, e nessa miscelânea de
motivos, o que acontece é uma grande festa de democracia e civismo.
Acho bonito. Muitos jovens, e seus
admiradores, e professores, e políticos, e autoridades, e cidadãos ativos e
cidadão não tão ativos assim, toda cidade se reúne, e no fim das contas, grande
parte desfila pelas ruas, junto aos pelotões, e celebra a Independência. E a
Independência merece ser celebrada.
O dia 07, o cronológico, é feriado
nacional, mas o dia 08 é feriado municipal. Não sei se é feriado porque é
sete-de-setembro ou se é sete-de-setembro porque é feriado. Mas é feriado.
Desde sempre. Desde que me lembro. Feriado da Padroeira. Nossa Senhora d’Ajuda.
A Padroeira do bairro, cujo Padroeiro Paroquial é Santo Antônio. O dia 13 de
junho também é feriado. Tudo bem. A gente entende. E se você vir a Festa
Religiosa também vai entender porque Senhora d’Ajuda se tornou tão importante:
tem bendito, tem procissão, tem cortejo, tem terço, tem missa, tem leilão, tem
barraquinha (mais barraquinha), tem folia, tem alvorada, tem homenagem, tem
coroação, tem benção, tem doação, tem partilha, tem romaria, tudo acontecendo
junto e misturado na grande festa sócio-cívico-religiosa que é
sete-de-setembro.
O pessoal vem de longe pra rezar,
quilômetros de estrada de chão, quilômetros de asfalto. Os dois lados se unem.
A capela celebra cheia, nos nove dias de novena, as honras à Mãe de Deus. A
coisa é tão íntima que me disseram que houve até tempo em que as procissões
passavam permeando as barracas.
E a gente reza, depois compra, depois
ajuda a Igreja, depois dança, depois desfila, depois come, depois compra mais,
depois reza mais.
Esse ano, o início das apresentações
das bandas, à noite, esperava não apenas o fim das missas, mas também o fim das
celebrações de Igrejas não católicas que aconteciam próximas ao
sete-de-setembro. E não é preciso ser católico, nem mesmo Cristão, para ir às
compras. Eu mesma, em pessoa, ouvi alguém contar que uma Senhora de outra
Igreja fez doações para a Capela de Nossa Senhora d’Ajuda.
É a festa mais democraticamente
acolhedora que já vi. Recebe todo credo, todo gênero, toda idade, toda classe,
toda opção, toda condição, toda tribo, toda língua, todo ritmo, toda
naturalidade, todo sotaque, toda cor, toda moda.
Confesso, envergonhadamente, que não
sei por que a festa começou, nem quando. Na minha cabeça fechadinha ela sempre
esteve lá, esperando que eu crescesse e atravessasse o rio, e fosse às rezas, e
fosse às compras, e fosse à festa. Como um escritor que acorda, literal e conotativamente,
e de repente vê um poema numa flor que sempre esteve ali, eu despertei. De
repente eu notei que, como militante do movimento cultural, não dava o valor
devido àquele pedacinho tão rico de cultura.
Pensei em todas as coisas que eu vinha
fazendo automaticamente, rezando, cantando, dançando, comprando, como se aquilo
simplesmente tivesse obrigação de ser. Não! Não é obrigação! É o estreito
limiar entre o costume e a cultura. O costume ordena, a cultura convida. O
costume come, a cultura saboreia. O costume acontece, a cultura vive. De
repente, eu queria sim conhecer as razões por trás dessa bela festa do povo,
sobretudo porque fiquei encantada de estar ali, no meio da história
acontecendo.
A experiência do compartilhar, quando
ele se dá de fato no prazer e não no mecânico, tem o gosto daquela maçã. Para
alguns é maçã com açúcar derretido, para outros é maçã com açúcar e amor.
Caminha-se muito, gasta-se muito, complica-se o trânsito, empurramo-nos muito,
usamos nosso tempo. Mas tem amor. A experiência do compartilhar muitas vezes
não faz sentido e por isso faz parte de um delicioso grupo, que se distingue
dos outros no singelo detalhe da não-explicação. E não é, necessariamente,
porque não têm explicação, mas porque não precisam.
Por
Agenda
Tomando Conhecimento – Jô Pinto proseia com Luis Santiago,
03 de setembro, 19h, no canal dos Poetas e Escritores do Vale do Jequitinhonha
Leia Mulheres Araçuaí, encontro de discussão da obra
Heroínas Negras Brasileiras em 15 cordéis, de Jarid Arraes, sábado, 04 de
setembro, às 17h, via google meet, interessados pedir o link em
@leiamulheresaracuai