Nenzinha e Salene - Comunidade Quilombola Jenipapo Pinto - Foto: Jô Pinto |
Maria, Maria é um dom, uma certa magia, uma força que nos
alerta,
Uma mulher que merece viver e amar como outra qualquer do
planeta
Maria, Maria é o som, é a cor, é o suor
É a dose mais forte e lenta
De uma gente que ri quando deve chorar e não vive apenas
aguenta
Mas é preciso ter força é preciso ter raça
É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo a marca, Maria, Maria
Mistura a dor e a alegria (Maria, Maria. Milton Nascimento)
A música fala das lutas e da
força das mulheres, das barreiras de gênero e raça que são colocadas para nós e
que derrubamos, marcando nossa presença na história. Quando fui convidada para
falar com vocês sobre a mulher enquanto agente transformador de seu território,
fiquei pensando sobre o que falar. Decidi começar contando a história de três
Marias.
Maria de Jesus, minha mãe, começou a
trabalhar com 8 anos de idade numa casa para ajudar a própria família que era
muito pobre. Muitas vezes minha avó fazia chá de folha de laranja engrossado
com fubá para alimentar as filhas. Maria de Jesus passou de casa em casa até
casar-se aos 28 anos com meu pai, um trabalhador rural de Catarina, município
de Bocaiuva. Viveu 6 anos de casamento, ficou viúva aos 34 anos, migrou para a
cidade de Montes Claros e voltou a trabalhar em casas de família para nos
criar. Passou a lavar roupas para fora, numa bacia de alumínio sobre um banco,
passava com um ferro muito pesado aquecido com brasas. Muitas vezes nem recebia
pagamento pelos serviços domésticos. Criou os dois filhos com muita dificuldade,
vivíamos numa casa sem luz elétrica, sem rede de esgoto e não contávamos com a ajuda
de nenhum parente, vizinho ou conhecido. Maria
José, nasceu em Montes Claros, repetiu a quarta série algumas vezes antes
de se formar, passou a trabalhar como professora na zona rural de Bocaiuva.
Naquela época não havia escola em Catarina, então ela ensinava numa sala cedida
por um fazendeiro local. A merenda era preparada por ela no fogão a lenha,
depois, levada até a escola que ficava distante de sua residência, para isso
colocava o caldeirão suspenso numa vara, as pontas da vara eram colocadas sobre
seu ombro e de alguma de suas alunas. Caminhavam assim até a escola. Durante o
dia ensinava as crianças, à noite ensinava os adultos, era ela quem orientava
as meninas da região sobre questões femininas, era também quem intervia em
casos de violência dos pais contra as filhas. Depois de algum tempo conheceu o
marido, Antônio com quem se casou, passou a trabalhar em tripla jornada, na
roça, na escola e em casa. Durante o tempo em que foi professora na Fazenda
Catarina mobilizou a comunidade para construir e colocar para funcionar a
escola que hoje atende as crianças e adolescentes da região. Após a
aposentadoria, continuou a residir em Catarina e participar da vida da comunidade,
sempre reconhecida pelo seu trabalho de professora e fundadora da escola. Durante
sua vida recebeu homenagens locais pela sua trajetória em favor da comunidade. Maria do Rosário – Conhecida como
Rosarinha, trabalhadora rural, negra, nasceu e cresceu na fazenda Catarina,
região de Bocaiuva. Todo o seu sustento retirado da produção agrícola familiar.
Animava a comunidades com seu dom de rezar nas festas religiosas. Conciliando
seus trabalhos domésticos e na roça com a liderança comunitária, atuou na associação
de trabalhadores rurais de Catarina. Tornou-se tesoureira da associação. Mobilizou
as mulheres para criar a associação de mulheres de Catarina cujas conquistas se
destacaram. Foi dirigente regional e estadual da FETAEMG (Federação dos
Trabalhadores Rurais de MG) e sócia do CAA e da Cooperativa Grande Sertão. Sua
trajetória hoje está registrada em teses e dissertações para as quais foi
entrevistada, bem como na memória dos moradores da comunidade rural de
Catarina. Nestes três exemplos vemos a
força, a garra e o poder transformador das mulheres. Em todos os espaços, seja
no trabalho em casa, na educação e na comunidade as mulheres agem transformando
as condições de vida e beneficiando a todos. Ao longo da história fomos
convencidas a acreditar que não temos poder. No início da república as mulheres
eram impedidas de votar, só podiam trabalhar com autorização dos maridos, seus
bens eram controlados pelos maridos, não tinham poder sobre os filhos. Os
homens diziam que as mulheres eram inferiores e não podiam participar da
política. Também eram proibidas de estudar. Caso perdessem a virgindade antes
do casamento podiam ser devolvidas e deserdadas. Muitas eram internadas em
conventos ou asilos pelos maridos que ficavam com suas heranças. Estas
proibições e violências eram formas de sufocar nosso poder transformador. Se
voltarmos mais no tempo, veremos que as mulheres inventaram a agricultura e a
pecuária. Entre as primeiras sociedades humanas, quando os homens saiam para
caçar, as mulheres ficavam cuidando da prole, ali iniciaram o cultivo dos
alimentos e a criação de pequenos animais. Ou seja, desde sempre temos o poder
de agir no sentido de modificar o espaço em que vivemos. Sei que me dirijo a
mulheres que agem para alterar suas condições de vida e de suas comunidades:
Seja na família, seja, no bairro, na zona rural, urbana vocês mobilizam, atuam,
incentivam e promovem a transformação. Uma forma de fazê-lo é ingressando nas
organizações políticas da sua comunidade, participando das associações de
bairros, das associações rurais, dos colegiados escolares, enfim, da vida
política de sua localidade, cidade e país. O termo “política” surge de Pólis,
que na Grécia antiga significava cidade, Política é a gestão da pólis, da
cidade. Todas as organizações são formas políticas. O ser humano é um ser
político. Nós mulheres não devemos temer as tentativas de nos fazer voltar para
trás na nossa caminhada, sempre que as mulheres conquistam espaços na política
e na sociedade são ameaçadas, tentam nos fazer retroceder. Para além de
participar das associações e organizações coletivas locais, temos que saber
escolher na hora de votar e eleger pessoas que nos representem, mulheres como
nós, especialmente negras e indígenas, trans, que defendem os direitos das
minorias políticas. Termino com uma
questão para reflexão: Se nós mulheres somos uma parcela grande do eleitorado,
por que motivo elegemos tão poucas mulheres?
Por
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